sexta-feira, 1 de junho de 2007

EM NOME DO POVO

EM NOME DO POVO
A história está prenha de movimentos evangelizadores, purgas unanimistas em torno da erradicalização do mal e em que, na sacralização do bem, se provocaram as maiores carnificinas e genocídio da humanidade. Aleatoriamente, tomando em conta os que nos ocorrem, começaríamos pelas Cruzadas ( expedição empreendida pelos cristãos, na Idade Média, que tinha como objectivo libertar os lugares santos, e designadamente Jerusalém, do poder Islâmico), em que, em nome e a coberto desse movimento, se cometeram atrocidades impensáveis. Seguindo uma ordem cronológica, lembraríamos a época dos Descobrimentos, a partir do séc.xv, em que, em nome da descoberta de novos mundos, foram chacinados milhões de pessoas, quer pelos Portugueses, pelos Espanhóis, Franceses, Ingleses, bem como assim, Holandeses. Já no séc.xx, lembremo-nos dos regimes fascistas, Italiano (Mussolini), Espanhol (Franco), Português (Salazar), este que os historiadores se dividem em classificar o Estado Novo entre fascista e ditatorial/autoritário. Assim como, também, o regime nazi alemão (Hitler), cuja sede incomensurável de poder, recorrendo a bodes expiatórios e ao nacionalismo exacerbado, levou o povo alemão à perseguição e extermínio de mais de seis milhões de judeus. Em resumo, como se pode depreender desta longa introdução, foi sempre em nome do povo que se arrasaram civilizações, se exorcizaram ideias contrárias à ordem estabelecida, mas sempre em proveito de uma minoria, quase sempre, com fins inconfessáveis. Ou seja, desde que se consiga manipular o povo (como entidade abstrata), este, na sua cegueira massificada, interprete que os mártires que vão tombando são os causadores do seu desassossego e só o seu imprescindível desaparecimento levará ao interesse geral e ao progresso, é mais fácil conduzi-lo para onde se quer do que manobrar uma marioneta.
Vem isto a propósito da actuação da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE), no dia do consumidor, com várias acções de fiscalização em todo o país a serem cobertas pelas televisões generalistas. Estou certo que a maioria bateu palmas. Afinal se todos somos consumidores, a ASAE, transcendendo o seu objecto, está a cuidar de todos nós. È como se de repente esta autoridade sanitária se transformasse no longo braço justiceiro do povo. Faça o que fizer não merece reparo a sua acção. É como se travasse uma luta entre os cristãos e os infiéis. Os consumidores são os cristãos e os infiéis são os operadores, esses parasitas intermediários, que em vez de criarem riqueza, apenas oneram os produtos com valor acrescentado.
Todos estamos de acordo que as actividades económicas do país precisavam de uma urgente reforma, porém, não se pode fazer em dois anos o que se deveria ter feito em vinte. O que se está a fazer, num momento tão periclitante para a nossa economia, é como um fuzilamento popular de uma classe que é essencial aos consumidores e ao país. Bem sei que é difícil defender esta tese, sobretudo, quando sabemos que existem casos extremos, nomeadamente a contrafacção e a adulteração de produtos considerados de alta perigosidade e, provavelmente, a ASAE, através dos seus agentes, até serão sensíveis a situações determinadas. Mas, será assim ou limitar-se-ão a cumprir o preceito “Dura lex sed Lex”? Sabe-se que a procura excelsa da qualidade e da perfeição sempre foi, ao longo da história, uma utopia, em que são variadíssimos os exemplos de efeito contrário ao pretendido, exactamente por entrar na subjectividade de cada um de nós. Deveremos atribuir culpa às directivas comunitárias, em que, numa espécie de ditadura de Bruxelas, é imposta a um país periférico como o nosso, uma lei dura, inconsequente, sem ter em conta, as diferenças que nos separam dos demais, em que essas assimetrias são assentuadas pelo pousio das terras sem amanho, em consequência, com o desapa-recimento, quase brutal, da vinha, do olival, dos citrinos, das pequenas explorações
agrícolas, tão recalcadas na nossa memória colectiva e que é uma lástima ver todos
esses campos abandonados, cuja inactividade concorre directamente para a desertifica-
ção do interior?
Voltando à ASAE, no dia do consumidor, e a cobertura televisiva das suas inspecções: Não é dever do Estado primar pelo princípio da reserva? O Estado ao envolver-se com as televi-
sões nas suas actuações está a promiscuir-se, está a contribuir para tornar acções
inspectivas, dignas obrigatoriamente de respeito, em reality-shows e a usar os mesmos métodos daquelas, em que o que importa é o fim sem ter em conta os meios.
Além de mais, nesta vulgaridade, os canais televisivos, contrariamente ao que se pensa ser pedagógico, debilitam o mérito da acção e acabam por salientar o lado imoral e até, possivelmente, ilegal do acto. Imoral, porque basta lembrarmo-nos da Lota de Setúbal, em que todos os vendedores foram presenteados com um aparato “à Rambo”, com polícias de metralhadora em riste e de cara coberta, para apreender peixe fresco vindo de Espanha, de reconhecida qualidade, e que foi confiscado por terem sido reutilizadas as embalagens em madeira e que foi doado a instituições de solidariedade social. Surge-nos na lembrança a interrogação de uma vendedora: “Se não está bom para nós vender-
mos, está bom para ser consumido por instituições? Claro, quem paga somos nós!”
Ilegal: Salvo melhor opinião, a recorrência às imagens televisionadas por parte de
qualquer polícia, no desempenho da sua missão, quando têm por objecto propagandear a sua eficácia e mostrando os contraventores, têm implícito um manifesto abuso de poder. Um abuso de direito que é ilegítimo para um titular que excede manifestamente os limites impostos pela boa fé, num exercício que deveria ser sempre acompanhado de discrição. Os infractores aparecem aos olhos do público como troféus, como prisio-
neiros de guerra, “aqueles”, “os tais”, “os xicos-espertos”, “aqueles que querem vender gato por lebre”. Quando, por vezes, se tratam, simplesmente, de pequenas infracções adjectivas.
Será que não violará o direito à imagem? Uma vez que, embora o prevaricador possa
dar ou não consentimento, como é apanhado de surpresa, a sua capacidade reactiva e de decisão fica diminuída e o primeiro instinto é o de tentar explicar-se, desculpando-se atabalhoadamente perante as câmaras.
Em nome do povo, que somos todos, reflicta-se nestas questões de facto e de direito.
A bem do País!

LUIS FERNANDES
(COIMBRA)

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