Era uma mulher bonita. Teria cerca de quarenta
anos. Bem vestida, com roupa de marca e tons harmoniosos a fazer “toillete”. A complementar, os longos
cabelos compridos, pretos de azeviche, um rosto lindo, redondo, característico
das mulheres portuguesas. Os seus olhos castanhos eram rasgados e grandes. Não
fosse aquele olhar baço, quase sem brilho, uma tristeza carregada, talvez uma
mágoa de amor recente, e dir-se-ia que esta belíssima mulher poderia,
facilmente, encarnar o paradigma de mulher perfeita. Aquela virgem que qualquer
homem idealiza e tem idolatrada num cantinho do seu cérebro e que nos momentos
de abstracção a toma como real e sua.
A estátua feminina entrou na
loja, aparentemente, sem se debruçar em nada de especial. O seu olhar vagueava
por entre os milhares de pequenos objectos antigos. Pegou naquela boneca da
década de 70, fingiu brincar com ela e, por momentos, pareceu que o seu rosto
se iluminava. Devagar, muito devagarinho, com ternura estudada, voltou a pô-la
no lugar. Dolentemente, com olhar vago, foi revisitando o passado através dos
objectos expostos. Tudo indicava não querer ser incomodada.
Quando lhe dei a saudação e lhe perguntei se
poderia ajudá-la nalguma coisa, ela pareceu nem ouvir e nem se dignou
responder. Normalmente, esta atitude provoca-me uma irritação surda. Porque se
não pergunto há pessoas que são capazes de dizer aos seus amigos: “entrei naquela loja, peguei, vi preços, saí
e ninguém me perguntou nada. Julguei-me tão insignificante!”. Por hábito,
com um pequeno sorriso, dou os bons dias e pergunto se posso ajudar nalguma
coisa. Quem sabe, com a minha experiência, não poderei aconselhar alguma
pequena prenda, ou dar uma pequena explicação acerca da proveniência e história
de determinado objecto. Mas, a excepção, a mostrar a normalidade da regra,
existe e há pessoas que até se sentem incomodadas com a saudação de um simples
“bom dia”. Em vez de responderem,
assertivamente, com simpatia, pelo contrário, incomodadas, interrogam, quase
com raiva: “posso ver? Posso? Não posso?!”.
Triste sorte esta, ser caixeiro das frustrações de cada um!
Mas não deveria ser o caso desta mulher –eu
pressentia. Com o tempo e experiência empírica vamos adquirindo capacidades quase
mediúnicas de adivinhação. Ela tinha um
objectivo, pensava para com os meus botões. Provavelmente estava a ser
influenciado pela beleza marcante deste raro espécime feminino. Não acredito em
Deus, mas se ele Ele existisse como entidade justa e equitativa nunca deveria
ter dado tanta beleza a um ser humano. Se calhar, a brincar, digo eu, gosta de
descriminar positivamente, ou então, adormece e quando acorda estremunhado,
displicentemente, no primeiro bebé que nasce, descarrega todo o seu imenso
poder, sem ter em conta o equilíbrio do belo.
De longe, eu observava todos os seus passos.
Ela não andava… ela ondulava! Ou flutuava como uma pena balouçante perante os
meus olhos, como se mal poisasse os pés no chão. Não pude evitar mil
pensamentos luxuriantes na minha cabeça e imaginá-la nua numa grande cama de
cetim vermelho a estender-me a mão e, num longo sussurro de açúcar em ponto e
quase ininteligível, “rmemme”, a
soletrar: ”Vem cá meu bebé!!”. No
meio deste entorpecimento mental, fui
interrompido pela sua voz envolvente, doce como mel. A diva estava no
escaparate dos livros usados e tinha à sua frente um livro de São Cipriano. Então
pergunta-me: “é verdade que não se deve
manusear este livro?”. De modo algum, respondi, nenhum livro é amaldiçoado.
As interpretações e a utilidade, para o bem ou mal, que os leitores lhe dão, isso
já é um problema de cada um. “Não é o que
dizem”, replicou com aqueles olhos envolventes de Sol deitado sobre o mar à
tardinha. Pois não, continuei, trata-se de um livro de feitiçaria que foi
traduzido dos antigos manuscritos de São Cipriano onde se revelam segredos da macumba
secular. Aconselha-se uma reserva total, um silêncio místico, factor de êxito
absoluto do livro. O segredo é a alma do negócio, segundo o preâmbulo deste
mensageiro das coisas ocultas. “Este
livro não deve ser emprestado a ninguém, para não quebrar o efeito do feitiço”,
transmite-se no prólogo. Quando cheguei aqui, não pude deixar de dar uma
gargalhada pela crendice das pessoas. “Ai,
por favor, não fale assim” -pareceu meia ofendida. Inferi imediatamente que
o melhor era refrear os meus ímpetos filosóficos, a mulher, talvez por estar
vulnerável, acreditava em tudo e o melhor era eu ir na onda.
“Sabe? Uma coisa que ainda não vi aqui? E que não encontro?”. Interrogou.
O que procura? Indaguei, contente, por ter um pretexto para abandonar a
conversa sobre feitiçaria. “Uma ferradura!
Dizem que é bom ter em casa. O que acha o senhor?”. Olá!... A coisa parecia
estar a compor-se –não pude deixar de rir para dentro e pensar: já vi tudo! Tu andas à procura de um amuleto
para salvar o teu casamento… ou, sei lá, o teu namorado das garras de uma
conquistadora barata. O teu amor, o teu homem, deve ser mesmo totó. Dá Deus nozes… -pensei para comigo-, mas descansa, minha rainha, vou dizer-te tudo
o que queres ouvir. Vais levar pela medida grande. Então respondi: acho
bem! Claro que depende da ferradura! Mas está com sorte, por acaso tenho mesmo
dessas… encantadas, que realizam todos os nossos desejos, vendo-as aqui, no
estabelecimento! “A sério?! Tem mesmo?”.
Interrogou a musa. Claro que tenho, respondi. Mas devo adverti-la duma coisa:
apenas realiza um desejo. Só um! “Não
importa, também só preciso de produzir um”, retorquiu. Engraçado, como a
mulher se transformou. Agora toda ela era vitalidade, fé e esperança. Tinha
ganho uma nova vida. Os seus olhos brilhavam de tanta felicidade. De certo modo
estava a enganá-la mas, em contrição, era o que ela queria ouvir. O que eu estava
a fazer era simplesmente uma acção caritativa, limitava-me a ser o projector
que reflectia a formalização e a execução do seu crente e ardente desejo.
Comprou uma ferradura e foi-se à vida… como quem diz, se calhar, tentar realizar
o sonho martelado em tantas noites de lua cheia. Nunca mais pensei no assunto.
Passados dois meses vi entrar na loja a mesma
mulher, ou antes, o mesmo corpo belo de Vénus mas irradiante de felicidade.
Vinha acompanhada com o marido. Enquanto ele se prendeu por um brinquedo do seu
tempo de menino, ela sorrateiramente chegou-se junto a mim e, ao meu ouvido,
balbuciou baixinho: “muito obrigado pelo
que me vendeu. Recuperei o meu amor. Bendita a hora em que entrei na sua
loja!”. E deu-me um beijo na face.
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