sábado, 22 de janeiro de 2011

MEU AMIGO "CABEÇA DE VENTO"

(IMAGEM DA WEB)



 Vou lá muitas vezes almoçar. O meu amigo tem um pequeno restaurante numa rua estreita desta zona velha da cidade. É uma casa pequena, de balcão corrido, com oito lugares sentados e um primeiro andar com três mesas e cerca de 12 lugares. Este pequeno estabelecimento foi sempre de hotelaria. Lembro-me de, nos idos anos de 1970, de ser uma taberna, uma tasca, frequentada por clientes do copo de “três” e sardinha frita em molho de escabeche, com portas à “cowboy”, de abrir para a frente e para trás.
Hoje é uma casa limpa e fresca onde dá gosto comer. Para além disso, o meu amigo “avoado”, tem uma característica pouco comum, mas condenável, como mais à frente irei mostrar. Um cliente ainda está a comer, de meio-prato-cheio, e já está o “avoado” a interrogar: “quer mais um bocadinho de costeleta? E umas batatas fritas? E mais um copo de cerveja?”. Uma pessoa acaba de comer e já está ele: “então não vai uma sopa? Não? E sobremesa? Olhe que tenho ali um doce de amêndoa espectacular!”. Como não queremos sobremesa e só queremos mesmo café, diz ele: “e vai um bagacinho com o café?”. Bem sei que você, leitor, está em pulgas para saber quanto custa esta refeição, mas acontece que só lhe vou mesmo dizer quase no fim. Portanto, se faz favor, não interrompa o meu raciocínio.
Desde sempre me fez muita “espécie” este comportamento do “avoado”. Por um lado via este procedimento com admiração, por outro, porque já tive um estabelecimento de hotelaria e sei quantos grãos de milho leva um alqueire, passei a olhar este caso com preocupação. Sobretudo, quando ao meu lado via o comensal a abusar. Pedia mais carne, mais batatas fritas, mais vinho, mais uma mousse de chocolate com um bocadinho de rum, mais café e mais bagaço. Mas como dizer ao meu amigo que, de certeza absoluta, ele estava a ter prejuízo?
Para além de tudo isto, eu sei que o “avoado” paga uma renda de 1250 euros. Tem na cozinha duas pessoas, uma cozinheira e uma ajudante e mais um empregado a servir às mesas.
Há um ano para cá passei a ver o semblante do meu amigo empresário cada vez mais carregado. Algumas vezes até pálido. Aquele ar simpático tinha desaparecido. Era evidente que estava em profundo estado depressivo. Reparei também que, volta e meia, bebia álcool numa chávena de café. Muitas vezes, cheguei a suspeitar estar já embriagado à hora do almoço.
Há uns meses atrás foi internado de urgência no hospital. Durante cerca de um mês esteve afastado do seu pequeno negócio, que lá foi andando graças a amigos que deram uma mão.
Embora nunca me confessasse, sei que o meu conhecido “avoado” tem mais de um ano de rendas em atraso e muitas outras dívidas que, segundo se consta, se elevam a vários milhares de euros.
Até há poucos meses cada refeição completa custava 5 euros. Depois aumentou para 6 euros, que é quanto custa hoje.
Ao longo do tempo, sub-repticiamente, fui-lhe dizendo que o que levava por refeição era pouquíssimo. “Se levasse 7,50 euros não seria demais”, dizia alto para todos os clientes presentes ouvirem. Claro que, certamente, depois de ter saído, levei uma roda de parvo pelos restantes fregueses.
Não sei se o “avoado” me escutou ou não. Olhava para mim com olhar parado, nada dizia, e se apático estava, distraído continuava. Sei agora, por “zunzuns”, que vai encerrar dentro de pouco tempo.
Estará certo isto acontecer? “Claro que não, mas de quem é a culpa? Se ele via que não estava a dar para as despesas porque não subiu o preço?”, tenho a certeza que, em descarga de consciência, é o que pensamos. E se pela concorrência ele não pudesse elevar o preço, porque pequenas casas como esta, aqui na Baixa, praticam estes valores baixíssimos? Poderemos pensar que estas pequenas casas, com a conivência de todos, de proprietários, de clientes, se transformaram em armadilhas mortais para estas pequenas famílias? É evidente que haverá aqui muita falta de arriscar no preço servindo bem, mas, fácil é para mim, que estou de fora, diagnosticar soluções. Para quem lá está dentro e sofre esta deflação económica crescente, que continua arruinar sonhos de independência, vidas familiares, é que sabe. Poderemos pensar nisto por um momento?
Sem me armar em moralista, acho que pela dignidade, talvez muita falta de coragem associada também, devemos interrogar: mas que concorrência é esta? O consumidor - que somos todos, eu, você e o outro- é uma massa anónima tremendamente interesseira. O que queremos mesmo é comprar ao mais baixo preço do mercado. Pouco nos importa se, com este gritante egoísmo, estamos a mandar para o charco, para a miséria, centenas, milhares, de “avoados” como este meu amigo. Só nos lembramos destas pessoas, da grande função social que desempenham -que têm vida e também dignidade e direito a ganhar dinheiro-, quando batemos com o nariz na porta e vemos um letreiro colado: “ENCERRADO POR INSOLVÊNCIA”.
Com lágrimas de crocodilo, iremos lamentar: “coitado do “avoado”, era tão bom rapaz…”



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