Recuando no tempo, para a década de 1960,
parece-me estar a vê-la, a caminhar na rua principal de Barrô. Passo seguro,
ondulante e libidinoso, envolta numa timidez que lhe conferia uma aura de
mistério e graça inexplicável. Aquele rosto bem modelado de mulher trintona, de
olhos expressivos, e emoldurado, sempre, de cabelo curto bem arranjado em “permanente”. Com corpo de boneca parecia
um manequim. Tinha uma sensualidade imanente. Era como se tivesse um espírito
de luz que, sobressaindo das suas entranhas, lhe concedia um fino e cortês sublinhado
pela natureza.
Era a Preciosa, como todos a tratavam na
altura. Nenhum suplemento titular fazia acompanhar o nome principal. Estranho
isto acontecer numa aldeia. Nesta época todas as pessoas tinham um apêndice em
função do estatuto social que ocupavam no lugarejo. Se era solteira, fosse nova
ou idosa, seria sempre “menina”. Se
fosse casada, e de importância redobrada no lugar, seria sempre a “senhora”. Cada estado civil funcionava
como título de cortesia e respeito, logo seguido do nome principal. Se não
tinha grande importância social seria sempre acompanhada de uma alcunha. Era
assim que se conhecia a “cascoa”, a “velhaca”, a “tasqueira” e tantas outras pessoas modestas.
Acontece que esta musa, que
aqui vou contar a sua história, era somente tratada pelo nome de Preciosa. Que
segredo envolveria esta beleza? Foi graças a esta diva que eu, juntamente com
outras crianças pobres do concelho da Mealhada, durante vários anos, tive a possibilidade de usufruir de 15 dias de praia e de, pela primeira vez, ver o mar. Hoje
em dia, em que, pela facilidade de acesso e meios de locomoção, as distâncias
encurtaram, parece quase impossível uma criança de cinco anos nunca ter ido ver
o oceano. Mas, nessa altura, em que a pobreza falava mais alto que qualquer
vontade, poucos infantes se poderiam dar a esse luxo. Foi tão importante, para
mim, essa viagem até à Figueira da Foz que, passado meio século, ainda guardo
na memória cada bocadinho do caminho. Lembro de o percurso ter sido feito em
transporte numa camioneta de caixa-aberta. Cerca de uma vintena de miúdos, numa
grande algazarra, ao som de “o mar enrola na areia”, trauteado por todos, chegámos então à praia da claridade. Recordo, então, ter chegado àquela casa antiga
em Buarcos, perto do Largo Beira-mar. Percorrendo o tempo ao contrário,
revejo-me, à hora do lanche, sentado na areia fina, com o mar azul em fundo,
numa grande roda, conjuntamente com duas a três dezenas de crianças. No centro,
acompanhadas de duas enormes cafeteiras de esmalte cheias de café com leite a
fumegar e prontas a despejar nas canecas já na posse de cada um de nós, estão
três ou quatro mulheres –uma delas é a Preciosa. Num cesto de verga, ao lado,
estão cerca de trinta sandes de queijo de barra e cortadas às fatias de grandes
pães de centeio. O leite é em pó e de sabor indescritivelmente bom e adocicado.
MAS QUEM ERA?
MAS QUEM ERA?
Mas quem era a Preciosa? E qual a razão de os
habitantes da povoação a chamarem simplesmente pelo nome próprio, num misto de
ostracismo e respeito?
A Preciosa Pereira Morais
nasceu em 1924, em Barrô, entre as cercanias de barro cinzento que viria a dar
o nome ao pequeno burgo. Era herdeira de gente muito humilde e muito cedo, pela
necessidade, começou a servir nas
casas de lavradores mais abastados. Fazia um pouco de tudo. Ora sachava milho,
ora arrancava batatas, ou fazia limpeza e cozinhava para os patrões. Como era
muito bonita, depressa começou a ser cortejada pelos moços contratados pelos
grandes agricultores. Apaixonou-se perdidamente por um que lhe viria a fazer
dois filhos. Mas quisera o destino que este rapaz que lhe coubera em sorte não
correspondesse e preenchesse os anseios desta rapariga sonhadora. E num tempo
em que todas as mulheres que parissem tinham de casar, esta catraia preferiu
manter-se solteira e sozinha com dois rebentos a seu cargo. Um escândalo para a
época. Mas ela era forte e nunca se importou com o “diz-que-disse” e o “cortar na
casaca”.
Com o tempo, devido ao esforço dobrado
da terra, impróprio para o corpo feminino, começou a sofrer da coluna e a ter
muitas dores nos ossos. Um dia, já quase com quarenta anos, em que se sentiu
pior, foi ao hospital da Mealhada a uma consulta. Foi atendida pelo doutor
Artur Navega, então por esta altura de 1960, Subdelegado de Saúde do distrito
de Aveiro. Este médico gozava de uma grande reputação no concelho por ser muito
generoso para com os pobres.
Quando Preciosa o viu pela
primeira vez no hospital foi amor à primeira vista. Mas havia um grande
problema: o clínico era casado. Mas amor não escolhe estados, é um sentimento
indomável que a racionalidade não explica. Estava dado o primeiro passo para a
grande paixão da vida desta habitante da aldeia entre a Mealhada e o Luso. Ali
começou uma relação que só a terra há-de comer e o tempo fará esquecer.
Como a Preciosa precisava
de praia para curar as suas dores mas não tinha possibilidades financeiras,
naquele velho hospital, e nas sucessivas consultas, nasceu a ideia de, a
expensas do seguidor de Esculápio, ela ir para banhos juntamente com as
crianças pobres do concelho.
A partir dali, na aldeia e
nas terras em seu redor, Preciosa passou a ser a ponte entre a pobreza e o
poder decisório, marcado pelo velho médico apelidado de “pai dos pobres”. As necessidades multiplicavam-se para quem nada
tinha. Umas vezes, era o adolescente que precisava de ir trabalhar para a
hotelaria mas não tinha o “Cartão de
Sanidade”, essencial para exercer na labuta. Outras vezes, era a criança
que precisava de cuidados médicos mas os progenitores não tinham dinheiro. A
todas essas aflições esta mulher dava conta ao clínico que, para além de
satisfazer os seus anseios, consultava gratuitamente e ainda oferecia os
medicamentos.
A casa de Preciosa, em Barrô, naquela
época, era o porto de abrigo dos necessitados. Um dia, uma mulher do lugar foi
bater-lhe à porta muito preocupada. A filha, pouco mais que adolescente, andava
a engordar muito. Para além disso, tinha dado em vomitar. Será que a
Preciosa não poderia falar com o senhor doutor, lá na Mealhada, para ver se
este lhe receitaria alguma coisa para o enjoo? Claro que a mulher de
boa-vontade, mesmo sem ser médica, diagnosticou imediatamente a doença, mas não
disse nada para não criar preocupações. E lá foram as três mulheres para o
hospital. Quando a velha mãe foi posta perante a evidência de uma gravidez,
ia-lhe dando o “fanico” mas emendou
logo: “Ó senhor Doutor, eu juro que a
minha filha nunca teve nada com ninguém! Isto só pode ser desígnio divino.
Acredite senhor Doutor!”. Respondeu o velho e experiente médico, “não há problema, senhora, eu acredito, é um
milagre da vida. Case a sua filha com urgência e tudo se resolve!”.
O Doutor Artur Navega nunca dizia não a
ninguém. Era uma pessoa boa e com uma sensibilidade à flor da pele. O segundo
amor do clínico ia com ele para todo o lado, ao Porto, a Lisboa. Como ele
gostava muito de pescar, levava-a sempre com ele para a Figueira. Gostava de a
ensinar a lançar o fio no mar. Preciosa sempre o tratou por “senhor Doutor”. Ele pedira-lhe, numa
bela altura, que jamais o tratasse por tu.
Um dia, estava na aldeia, em Barrô, e teve uma visita surpresa. Era alguém mandado pela Dona Aurora, esposa do velho médico, com uma mensagem: o senhor doutor Artur Navega estava a morrer no hospital. Quereria ela ir despedir-se dele nos últimos momentos de vida? Preciosa não foi. Mas naquele gesto sublime de carácter, de uma esposa atraiçoada, entendeu a imensa generosidade daquele acto impossível de descrever. Foi uma grande lição que recebeu com sofrimento. Nunca mais se esqueceu. Mas a consciência não a acusa de nada. Coração apaixonado não escolhe o seu amor.
Um dia, estava na aldeia, em Barrô, e teve uma visita surpresa. Era alguém mandado pela Dona Aurora, esposa do velho médico, com uma mensagem: o senhor doutor Artur Navega estava a morrer no hospital. Quereria ela ir despedir-se dele nos últimos momentos de vida? Preciosa não foi. Mas naquele gesto sublime de carácter, de uma esposa atraiçoada, entendeu a imensa generosidade daquele acto impossível de descrever. Foi uma grande lição que recebeu com sofrimento. Nunca mais se esqueceu. Mas a consciência não a acusa de nada. Coração apaixonado não escolhe o seu amor.
A Preciosa Pereira Morais, de 92 anos, foi
sepultada hoje no Cemitério de Luso. Deixo este texto elogioso em memória de
uma mulher simples que tanto bem fez a muitos e, sobretudo, marcou a minha
infância. Uma grande salva de palmas!
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