O encontro foi recentemente mas,
confesso, a irritação ainda não me passou. Fiquei tão incomodado que,
desconfio, não voltarei a falar com esta gente. Antes de me alongar, como
ressalva, devo clarificar que o defeito é meu. Não é deles. Sou um tipo
esquisito. Não interesso a ninguém. Tenho a mania que sou incorruptível, que
sou diferente, para melhor, de certa tralha que para aí anda. Claro que é
pura arrogância, a raiar a estupidez e auto-convencimento, mas adiante.
Não posso com gente embusteira, com
malabaristas que querem estar bem com Deus e com o Diabo. Provocam-me uma
comichão maior que uma dose massiva de urticária. Sempre fui assim, mas com a
idade fiquei muito pior. E o problema é que não me consigo conter e digo na
cara dos intrujões o que penso deles. Se é certo que fico aliviado –em boa
verdade este prazer que sinto não tem preço-, por outro lado, constato, os sujeitos,
perante a minha frontalidade, olham para mim como se olha para um louco, ou
talvez como um animal que se pode tornar perigoso a qualquer momento. E, no
mínimo, evitam-me como se esquiva de um aranhão.
Às vezes pergunto-me porque sou assim. Por que
não sou polido, cheio de boas maneiras, controlado perante a hipocrisia latente
e presente e dizer o que certa gentinha quer ouvir. Porque tenho de ser assim?
Interrogo tantas vezes. Provavelmente a razão, estou em crer, é que fui muitas
vezes enganado ao longo da vida por gentalha como esta que ainda não
identifiquei, mas lá irei. Vou só contar uma história para exemplificar. Comecei
a trabalhar na Baixa, no comércio, em 1973, com 16 anos. Passando a imodéstia, para
além de ser muito aplicado, era um miúdo cheio de ideias de vencer a pobreza e
muito trabalhador. Sabia que só através do trabalho conseguiria dar o salto. Durante
os dias úteis atendia clientes ao balcão, à noite ia estudar e ao fim-de-semana ia para
um café servir à mesa. Penso que o meu afinco deveria ser perceptível. De
tal modo que havia na Rua Eduardo Coelho um comerciante, com uma ourivesaria, o
senhor Rider, que quando me via fazia-me um festim de elogios, assim no género:
“hás-de ir muito longe, rapaz! És muito
trabalhador e tens muito jeito para o negócio!”. Talvez por tantas vezes
esta mensagem ser repetida, ou porque se alongasse ainda mais nos louvores, acabei
a acreditar que um dia poderia contar com a sua ajuda para me estabelecer por
conta-própria.
Quando saí do Serviço Militar, em 1978, com 22
anos, já casado, lembro-me de me deitar, à noite, e acordar, de manhã, com o
mesmo desejo: ter a minha própria loja. A procura estava no auge e não havia
mercadorias para vender. Havia muito dinheiro em circulação. Por essa altura
surgiu o que eu considerava um bom negócio, mas havia um problema: não tinha
dinheiro. Então, quando o desejo extravasa a razão deixamos de considerar as
dificuldades e achamos que não há fronteiras até ao impossível. E fui falar com
o meu alegado amigo Rider a sua casa, na Rua do Brasil. Nesta tentativa de investimento
estava em causa dois mil contos –dez mil euros, hoje-, uma pequena fortuna para
a época. Cheio de entusiasmo, expus o meu plano e completei com a frase: será que o senhor Rider pode ser meu
avalista neste negócio? Em face desta interrogativa qualquer homem
considerado normal teria dito ali mesmo que não podia. Poderia apresentar
razões variadíssimas como, por exemplo, que me faltava experiência e que não
deveria arriscar. E a história, para ele enquanto garante, acabava ali. Mas o Rider
era muito inteligente e de “normal”
tinha pouco. Era um tipo muito esperto. Em vez de desmotivar, pelo contrário,
incentivou e disse que era um bom plano. Para complementar a farsa garantiu-me
o aval de um empréstimo nesse valor e remeteu-me para o BESCL, Banco Espírito
Santo e Comercial de Lisboa, na Rua Visconde da Luz. Colocou-me um cartão seu
na minha mão e enviou-me para o gerente do banco, o senhor Silvano. Nessa noite
não dormi. Já me via na minha loja e a vender as minhas malhas e camisas. Eram
favas contadas. O negócio estava no papo, pensava dando voltas na cama. No dia
seguinte, logo ao abrir da instituição bancária –nessa altura, antes de se
tornarem especuladores, chamávamos assim a estas casas de crédito- estava ao
balcão a pedir para falar com o gerente. Mandou-me entrar para um pequeno
gabinete. Depois de acomodado e de lhe entregar o bilhete, cheio de força nas
palavras e ampliando o lucro visualizado, tratei de convencer o homem dos
empréstimos. Apesar do meu manancial de argumentos que saiam em catadupa o
funcionário bancário estava sempre a dar-me para trás. Ora porque não era boa altura, ora porque viriam tempos melhores, ora
que aguardasse mais uns tempos. Andava ali às voltas mas nunca dizia que
não financiava. Foi de tal modo cerceador que às tantas, porque já me estava a passar com aquela encenação, perguntei
abruptamente: diga-me de uma vez por todas, empresta-me o dinheiro ou não?
Foi então que o homem atirou o xeque-mate: não poderia financiar
porque o senhor Rider tinha um grande investimento em mãos e, em face disso,
não poderia ser meu avalista. Quando saí a porta percebi tudo. O espertalhão do
Ríder, sem se desmanchar, mandou-me para o banco mas, quase certo e antes
disso, ligou ao Silvano com a recomendação: “vai aí aparecer um puto sonhador. Despache-o o mas tente convencê-lo de
que a culpa não é minha.”
Nunca me esqueci desta história. É por isso
mesmo que sou terra-a-terra. Pão, pão,
queijo, queijo. Não posso com gente mentirosa, fingida. Refiro alguns
políticos da nossa praça. Provocam-me asco, vómitos, para ser mais exacto.
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