O último Sábado foi para mim um dia muito
atarefado. De tal modo que nem consegui ler os jornais diários da cidade e, por
isso mesmo, não soube da morte de Aurélio Augusto dos Santos, com 85 anos, mais
conhecido como Aurélio “Camiseiro”.
Só hoje, ao consultar os anúncios necrológicos espalhados por esta zona velha,
me apercebi. O Aurélio foi um importante comerciante na Baixa da cidade até
sensivelmente 1990. A sua loja foi no Largo do Poço, junto ao também
desaparecido Salão Brazil, e hoje ocupada pela Ourivesaria Silva. Embora não tivesse grande confiança com ele –do
meu ponto de vista, era uma pessoa austera e altiva, mas muito respeitada pelas
suas posições de esquerda –segundo o Diário as Beiras de hoje, era militante do
PCP. Lembro-me que a seguir ao 25 de Abril os comerciantes da Baixa estavam
divididos em dois blocos: direita e esquerda. A direita era maioritária por
aqui. Nos partidos políticos, a direita era representada pelo CDS-PP e PPD/PSD,
com os seus líderes Freitas do Amaral e Sá Carneiro. A esquerda era irmanada pelo
PS, com Mário Soares à frente, e o PCP, com Álvaro Cunhal. Mas,
verdadeiramente, o medo dos comerciantes identificados com a direita estava
projectado nos comunistas. Repare-se que estava em curso o PREC, Processo
Revolucionário em Curso, em que as ocupações selvagens e as comissões de
trabalhadores, de fábricas, negócios, quintas e habitações, estavam ao rubro.
Nesta altura, de 1974/75/76, Cunhal era o demónio vermelho que tirava o sono a
muitos comerciantes desta zona. E o Aurélio “Camiseiro” era apontado como uma sua extensão e olhado de revés
pela maioria dos colegas de profissão.
Tinha eu então cerca de 18 anos, recordo-me de
o meu patrão, já falecido e na altura um grande comerciante, com cerca de 15
funcionários em 1974 - e com 38 em 1982- fazer grandes discursos ao pessoal: “dos comunistas só vem miséria! Eles
distribuem o que os capitalistas aferrolham. Votem em Sá Carneiro! Este será o
garante dos vossos empregos!”. De tal modo ele dizia mal dos comunistas que
acabou por me despertar a curiosidade e, durante alguns anos, comprar o Diário,
o jornal do Partido Comunista, para tentar perceber o que era esta ideologia
–claro que nunca levei o matutino para a loja. Por esta altura aconteceu uma
coisa do arco-da-velha. Desde que me conheço, sempre gostei de ler um pouco ao
deitar-me e antes de adormecer. Então uma bela noite destes anos
revolucionários comecei a ler o livro “A
25ª Hora”, de Virgil Gheorghiu –que
conta a história de um agricultor romeno que se vê requisitado para trabalhos
forçados como se fosse judeu –que não era. Foi tal o entusiasmo na leitura
que só parei na última página e pouco antes da hora de me levantar como
normalmente. Uma das frases que nunca tinha ouvido falar e que li no enredo foi
“carne para canhão” –que significa
aqueles que vão tombar em primeiro lugar na frente inimiga, a infantaria, os
que vão dar o corpo às balas. Então, sem dormir, fui trabalhar como era costume.
Estava combinado que na semana seguinte eu iria para férias e já tinha tudo
planeado com a minha então namorada -e a seguir esposa. Nesse dia foi-me comunicado
pelo encarregado que, afinal e por uma razão que não lembro, já não poderia ir
de férias. Mandei-me aos arames e
disse ao gerente que não aceitava esta decisão. Ele descartou-se com o patrão.
As ordens tinham sido dele. Quando chegou o dono da loja, cara-a-cara,
disse-lhe que não estava certo o que estava a decidir em cima do joelho. Eu já
tinha programa marcado. Ele insistia que quem mandava no seu estabelecimento
era ele. Eu argumentava que mesmo sendo seu empregado também tinha vida
própria. Ele estava inflexível e não se demarcava. Às tantas atirei: o senhor
pensa que nós somos “carne para canhão”?
É? O que eu fui dizer! Então aconteceu uma coisa incrível, o comerciante ficou
possesso. À minha frente tinha um homem a bailar freneticamente a dança dos pezinhos e a praguejar num
lancinante e pungente murmúrio: “Meu Deus! Eu
tenho um comunista na minha casa! Tenho aqui um comunista! Como é que pode
ser?”
O que sei, tanto quanto me lembro, é que fui
para férias conforme o anteriormente combinado e, mesmo depois disto, o dono de
oito lojas na Baixa –hoje algumas encerradas- sempre me respeitou. Quando saí,
por minha iniciativa, em 1982, tentou tudo, desde aumentar o ordenado até
oferecer-me sociedade numa futura loja. Não aceitei por uma questão de honra.
Estavam em causa princípios que não abdicava por dinheiro nenhum. Para não me tornar
aborrecido não vou contar aqui.
Bem sei que me desviei do assunto que me levou
a escrever. Ou seja, o desaparecimento de um ilustre comerciante da nossa
praça: Aurélio dos Santos, popularmente conhecido por Aurélio “Camiseiro”. À sua família enlutada, em
nome da Baixa, se posso escrever assim –embora o executivo municipal ontem
aprovasse um voto de louvor, a título póstumo-, os nossos sentidos pêsames.
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