terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

AURÉLIO "CAMISEIRO" DEIXOU-NOS





O último Sábado foi para mim um dia muito atarefado. De tal modo que nem consegui ler os jornais diários da cidade e, por isso mesmo, não soube da morte de Aurélio Augusto dos Santos, com 85 anos, mais conhecido como Aurélio “Camiseiro”. Só hoje, ao consultar os anúncios necrológicos espalhados por esta zona velha, me apercebi. O Aurélio foi um importante comerciante na Baixa da cidade até sensivelmente 1990. A sua loja foi no Largo do Poço, junto ao também desaparecido Salão Brazil, e hoje ocupada pela Ourivesaria Silva. Embora não tivesse grande confiança com ele –do meu ponto de vista, era uma pessoa austera e altiva, mas muito respeitada pelas suas posições de esquerda –segundo o Diário as Beiras de hoje, era militante do PCP. Lembro-me que a seguir ao 25 de Abril os comerciantes da Baixa estavam divididos em dois blocos: direita e esquerda. A direita era maioritária por aqui. Nos partidos políticos, a direita era representada pelo CDS-PP e PPD/PSD, com os seus líderes Freitas do Amaral e Sá Carneiro. A esquerda era irmanada pelo PS, com Mário Soares à frente, e o PCP, com Álvaro Cunhal. Mas, verdadeiramente, o medo dos comerciantes identificados com a direita estava projectado nos comunistas. Repare-se que estava em curso o PREC, Processo Revolucionário em Curso, em que as ocupações selvagens e as comissões de trabalhadores, de fábricas, negócios, quintas e habitações, estavam ao rubro. Nesta altura, de 1974/75/76, Cunhal era o demónio vermelho que tirava o sono a muitos comerciantes desta zona. E o Aurélio “Camiseiro” era apontado como uma sua extensão e olhado de revés pela maioria dos colegas de profissão.
Tinha eu então cerca de 18 anos, recordo-me de o meu patrão, já falecido e na altura um grande comerciante, com cerca de 15 funcionários em 1974 - e com 38 em 1982- fazer grandes discursos ao pessoal: “dos comunistas só vem miséria! Eles distribuem o que os capitalistas aferrolham. Votem em Sá Carneiro! Este será o garante dos vossos empregos!”. De tal modo ele dizia mal dos comunistas que acabou por me despertar a curiosidade e, durante alguns anos, comprar o Diário, o jornal do Partido Comunista, para tentar perceber o que era esta ideologia –claro que nunca levei o matutino para a loja. Por esta altura aconteceu uma coisa do arco-da-velha. Desde que me conheço, sempre gostei de ler um pouco ao deitar-me e antes de adormecer. Então uma bela noite destes anos revolucionários comecei a ler o livro “A 25ª Hora”, de Virgil Gheorghiu –que conta a história de um agricultor romeno que se vê requisitado para trabalhos forçados como se fosse judeu –que não era. Foi tal o entusiasmo na leitura que só parei na última página e pouco antes da hora de me levantar como normalmente. Uma das frases que nunca tinha ouvido falar e que li no enredo foi “carne para canhão” –que significa aqueles que vão tombar em primeiro lugar na frente inimiga, a infantaria, os que vão dar o corpo às balas. Então, sem dormir, fui trabalhar como era costume. Estava combinado que na semana seguinte eu iria para férias e já tinha tudo planeado com a minha então namorada -e a seguir esposa. Nesse dia foi-me comunicado pelo encarregado que, afinal e por uma razão que não lembro, já não poderia ir de férias. Mandei-me aos arames e disse ao gerente que não aceitava esta decisão. Ele descartou-se com o patrão. As ordens tinham sido dele. Quando chegou o dono da loja, cara-a-cara, disse-lhe que não estava certo o que estava a decidir em cima do joelho. Eu já tinha programa marcado. Ele insistia que quem mandava no seu estabelecimento era ele. Eu argumentava que mesmo sendo seu empregado também tinha vida própria. Ele estava inflexível e não se demarcava. Às tantas atirei: o senhor pensa que nós somos “carne para canhão”? É? O que eu fui dizer! Então aconteceu uma coisa incrível, o comerciante ficou possesso. À minha frente tinha um homem a bailar freneticamente a dança dos pezinhos e a praguejar num lancinante e pungente murmúrio: “Meu Deus! Eu tenho um comunista na minha casa! Tenho aqui um comunista! Como é que pode ser?”
O que sei, tanto quanto me lembro, é que fui para férias conforme o anteriormente combinado e, mesmo depois disto, o dono de oito lojas na Baixa –hoje algumas encerradas- sempre me respeitou. Quando saí, por minha iniciativa, em 1982, tentou tudo, desde aumentar o ordenado até oferecer-me sociedade numa futura loja. Não aceitei por uma questão de honra. Estavam em causa princípios que não abdicava por dinheiro nenhum. Para não me tornar aborrecido não vou contar aqui.
Bem sei que me desviei do assunto que me levou a escrever. Ou seja, o desaparecimento de um ilustre comerciante da nossa praça: Aurélio dos Santos, popularmente conhecido por Aurélio “Camiseiro”. À sua família enlutada, em nome da Baixa, se posso escrever assim –embora o executivo municipal ontem aprovasse um voto de louvor, a título póstumo-, os nossos sentidos pêsames.





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