Cara Joana Marques Vidal, Procuradora Geral da
República, espero que esta minha carta vá encontrar Vossa Excelência de boa
saúde na companhia de todos os seus e em paz com o fantasma do segredo de justiça, esse desterrado e desalmado
espectro invisível que se torna materializado num estalar de dedos, e que, apesar
da sua luta, teima em atentar o seu magistério.
Porque não nos conhecemos, apresento-me: Luís
Fernandes, um pacato cidadão já com algumas rugas e muitos cabelos brancos que,
sem ímpeto legalista ou de justiceiro, faz da escrita uma espada a desbravar o
denso manto da ignorância das coisas simples e banais. Uma espécie de vento
rasteiro a mostrar que depois da passagem dos grandes eventos anunciados fica
sempre uma sedimentação calcada e sem história, uma injustiça latente nos macerados
mas sem voz para se defenderem das atrocidades tantas vezes disfarçadas de
legitimidade.
Enquanto garante da promoção da defesa da
legalidade democrática, escrevo-lhe esta missiva por dois motivos: o primeiro,
para levar ao seu conhecimento o teor de um acontecimento. O segundo, para a
interrogar como pode esta (in)justiça continuar aos seus e nossos olhos?
Embora já tivesse escrito a
primeira parte desta história, ou nefasto acontecimento, no mais antigo
semanário de Coimbra O Despertar, naturalmente sem identificar as partes e sem entrar no caso concreto, principio por lhe
contar que se trata de um processo de violência doméstica. Tudo teria começado
numa cidade do litoral, há cerca de uma dúzia de anos, quando Maria, na altura
com 25 anos, funcionária pública e moçoila
bonita, depois de um casamento falhado, se enamora de um novo companheiro.
Desta nova ligação apaixonada nascem dois filhos, actualmente um com 12 e outro
com meia-dúzia de anos. Ao que parece, com o passar do tempo, a mulher foi-se
apercebendo de algumas escapadelas e facadas no matrimónio e pouca vontade de
contribuir para a despesa caseira e começou a reclamar. Alegadamente, a resposta
por parte do parceiro ao longo dos anos foi umas contundentes bofetadas
embrulhadas em vapores etílicos, de vez em quando. Fosse por vergonha ou medo, Maria foi calando
e nunca apresentou queixa nas instituições para o efeito. Até que, presumivelmente,
há cerca de um ano começou a pensar em, conjuntamente com os filhos, abandonar
aquela vida de sofrimento. A opressão física e mental aumentou e agora
acompanhada com chantagem de lhe serem retirados os rebentos. E Maria, na casa
e sua propriedade do anterior enlace, continuou a calar. Até que há cerca de
três meses mudou para outro quarto e passou a dormir com o rebento mais novo.
Estava aceso o rastilho de mais violência já por ela sobejamente conhecida.
Pouco depois do Natal, a meio de uma noite e presumivelmente tomado pelo álcool, o companheiro
irrompeu e à frente da criança de seis anos violou e obrigou-a manter relações
sexuais. E Maria foi apresentar participação na PSP local. O denunciado foi sinalizado
e contactado pela polícia. Em resposta aumentou a pressão sobre a sua
comparte, retirando-lhe os cartões de crédito e o telemóvel.
Entretanto, por esses dias, sob
ameaça de morte, submeteu a mulher, e os filhos, a entrar no automóvel e
obrigou-a a consultar uma vidente numa localidade com praia ali próximo. A
visionária, perante os dois, sentenciou o fim daquela união e o agressor, ficando fora de si,
ameaçou matá-la juntamente com os filhos. Em desespero de causa, a sequestrada,
por telefone, conseguiu contar à mãe e descrever-lhe o cenário de horror e
violência que, juntamente com os seus rebentos, estava a decorrer. A progenitora
contactou a PSP e foi montada uma operação de resgate. Aberto o processo de inquérito,
foi aconselhada a sair imediatamente com os filhos da habitação familiar –recorda-se
que o locado está em seu nome. O tirano, como se nada se passasse, manteve-se onde
sempre esteve e a vítima foi viver para casa de uma amiga. Durante duas semanas
esta prole desfeita e em frangalhos viveu um calvário sem precedentes,
sobretudo pela impunidade e liberdade de movimentos do déspota que, apesar da
medida de coação imposta de não poder aproximar-se da ex-companheira, para
além de tentar resgatar os filhos na escola, continuou a intervalar com a
mulher juras de amor e intimações de morte.
PARTIDA PARA LOCAL DESCONHECIDO MAS NEM TANTO
Depois de duas semanas em casa de amigos, sem
meios necessários ao bem-estar, como roupas para os miúdos e largando o seu trabalho, no
âmbito da APAV, Associação de Apoio à Vítima, foi remetida para local
totalmente desconhecido até para a sua própria mãe –que se imagina como estaria
nessa altura a viver a odisseia de terror da sua única filha. Depois de uma semana
numa localidade de articulação, a ofendida, acompanhada dos seus dois filhos,
foi transferida para uma casa comunitária de apoio à vítima numa cidade a cerca
de 250 quilómetros, a sul.
Há mais ou menos duas semanas, numa noite
aparentemente igual a outras onde o silêncio e a angústia imperavam e só quebrados no ranger
das tábuas centenárias, por volta das quatro da manhã, foi acordada pelo
barulho e gritos da responsável pela casa. A tocar à campainha do edifício
estava o miúdo de 12 anos acompanhado com o pai e este com mais duas pessoas. O
que teria acontecido? Maria, presumivelmente, a tomar soporíferos para dormir e
tentar aguentar tanta sorte indigesta de mau fado, não deu conta da saída do
seu filho mais velho a meio da noite. Apesar de não ter telemóvel o adolescente
ausentou-se e, através de uma cabina pública, telefonou ao pai e deu-lhe conta
da localização. Ou seja, a mulher estava à mercê do agressor. Não aconteceu uma
tragédia porque, é de antever, não era a intenção do algoz desencadeá-la por
hora. Está de ver que, levando duas testemunhas consigo, perante as frágeis
provas de agressão física, pretendia provar a negligência grosseira maternal da ainda esposa.
Pergunta-se: estando o ofensor proibido de se
aproximar da vítima, não seria suposto ter uma pulseira electrónica e
controlado à distância? Interroga-se ainda, havendo filhos não será normal
acontecer um desfecho assim, de contacto entre as crianças e o progenitor? Para os serviços habituados a lidar com situações
análogas, não deveria ser evidente e assegurar o princípio da precaução? Que segurança é transmitida a quem é obrigada a abalar de trouxa às
costas do seu habitat e com os filhos a tiracolo? Ainda outra
interrogação: ao fazer deslocar a vítima e mantendo o agressor no seu meio,
como nada se passasse, não estaremos perante uma escandalosa beneficiação do
infractor? Estão erradas ou não as regras judiciais? Se estão certas, parece-me, alguém
foi negligente e não cumpriu com o que estava obrigado. Refiro, obviamente, a investigação e o juiz de instrução, este, que é o
garante dos direitos, liberdades e garantias de todos os sujeitos processuais,
sejam arguidos, assistentes ou ofendidos.
Mas ainda não acabou o calvário
desta sentenciada e a penar antes do julgamento, senhora Procuradora Geral da
República. Há uma semana, em face do desgaste psíquico que
tudo isto deve estar a causar e se adivinha no adolescente, o rapaz “passou-se”. Depois de agredir
verbalmente a mãe, empurrando a psicóloga e a assistente social e destruindo os
objectos à sua mão, em descompensação, acabou internado, em psiquiatria, num hospital de Lisboa.
Sem qualquer estratégia e harmonização de cuidados de segurança dos serviços envolvidos na salvaguarda
da integridade física de Maria, esta deu de chofre com o seu ex-companheiro na
mesma sala do hospital.
Para finalizar, senhora Procuradora Geral da
República, interrogo: estes procedimentos, tendo em conta que há vidas humanas
em jogo, não são uma espécie de roleta russa, pois não? É que se forem -e esperamos que não e este caso fosse pontual-, não é
de admirar que, segundo a UMAR, União
Mulheres Alternativa e Resposta, tenham ocorrido mais de quatro centenas de
mortes na última década!
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