Para além do texto "UMA AJUDA PARA O CORTÊS", deixo também a crónica "O PSICOPATA"; "UM ESTUDO ACADÉMICO"; e "O COSTA, DE CÁ".
UMA AJUDA PARA O CORTÊS
O Luís Cortês é um músico de rua. É invisual
e, fruto de um acidente, tem apenas um braço. Costumamos vê-lo a tocar órgão
junto à Igreja de Santa Cruz. Dar música a quem passa a troco de uma moeda é o
meio que lhe permite fazer face às suas despesas diárias. Na Baixa da cidade é
mais conhecido que o Papa Francisco. Compõe e musica muitas das suas criações.
Foi o autor de um Hino para o ex-candidato autárquico Pina Prata. Fez parte da
orquestra de músicos de Rua de Coimbra, no ano passado.
Desde há cerca de uma semana encontramo-lo no
seu posto habitual mas silencioso e com uma mensagem: “O “orgon” avariou. Peço ajuda aos amigos. Obrigado.”
O que é que se passou, Luís?
Interroguei. Respondeu assim: “o órgão
está avariado. Tem a membrana do altifalante lixada. O senhor Olímpio, da casa
de música Olímpio Medina, diz que, por ser antigo e ser difícil arranjar peças,
o conserto fica muito caro e que valia mais eu comprar outro. Acontece que eu
não tenho dinheiro para o poder adquirir. Com cerca de 100 euros eu já comprava
um novo nos chineses. Mas como, se não tenho dinheiro? Já estou assim há muitos
dias. Não tenho ganhado nada e estou com dificuldades em pagar a água e a luz.
Recebo de reforma 335,00 euros mas pago de renda 338,00 euros. É com a minha
prestação na rua que consigo comer. Tenho de confessar, senhor Luís, estou
mal!”
O PSICOPATA
Uma destas noites passadas estava fria.
Faltava pouco menos de uma hora para a meia-noite. O velho estava de joelhos no
chão da calçada a rasgar as calças com declarada fúria e uma ladainha impercetível.
Ao seu lado um saco plástico que embarrigado conteria não se sabe o quê. Era um
homem com cerca de 65 anos, magro, altura média e cabelos brancos atados em
rabo-de-cavalo. Primeiro parei ao seu lado e avaliei a situação. Durante uns
segundos, talvez minutos, tentei apreender o que o motivava aquela raiva. Como
não entendia a sua linguagem arrastada tomei-o como estrangeiro. Avancei então
para o cumprimento e oferta de auxílio: boa
noite! Precisa de ajuda?
Ele continuou a lamuriar até que
levantou os olhos na direção dos meus. Pensei para mim que estaria embriagado
ou drogado. Continuei a tentar estabelecer um diálogo e percebi que falava
português. Ao mesmo tempo que lhe estendia a mão para o ajudar a soerguer-se e
perguntando o que se passava. Ergueu-se mas tombou imediatamente para trás e
teria caído de costas caso não o agarrasse no limite. Amparei-o e encostei-o a
um carro ali estacionado. Com uma mão a segurá-lo ia falando com ele para
tentar perceber o que se passava e interroguei se precisava que o levasse a
qualquer lado, mas o homem não seguia o meu raciocínio e parecia não ouvir.
Entredentes, com a voz entaramelada e em aparente sofrimento, repetia: “deixe-me, vá-se embora! Sou perigoso! Mato
qualquer um com a maior das facilidades! Não consigo controlar… é uma potência
que sinto cá dentro, um desejo de matar” –ao mesmo tempo com a mão direita
encostada à minha barriga, creio que com dedos amputados, fazia o trejeito de
premir um ilusório gatilho –numa estranha forma de ser, sempre que encontro um
personagem estranho sou tocado pela curiosidade e sou atraído como mosca pelo
mel. Salta cá de dentro o meu lado de “escritor”,
ou talvez “psicólogo” –que teria sido
noutra vida, quem sabe?- e, perante um quadro assim, procuro perceber o lado
obscuro do humano. Imediatamente intuí que tinha ali à minha frente um exemplar
raro. Provavelmente um psicopata, uma pessoa com um transtorno de personalidade
antissocial, alguém que tinha noção de que não conseguia evitar o mal mas esta
perceção criava-lhe uma terrível angústia bipolar. Por pouco tempo e sem ter
ideia do perigo que corria, imaginei estar perante um Annibal Lecter –o
personagem criado pelo escritor Thomas Harris e passado a filme com o nome de “Silêncio dos Inocentes”, de 1991.
Continuei a ouvir as frases entrecortadas do
homem. Reparei que tinha o nariz achatado, de boxeur, e no centro, na cana,
tinha uma pequena cicatriz. Numa espécie de diálogo de surdos, ao mesmo tempo,
ia perguntando se já matou alguém ou esteve preso. Na resposta, entrecortada em
gemidos, ouvia: “deixe-me, eu sou
perigoso… eu não controlo esta potência que me vem cá de dentro… esta vontade
de matar!”
Foi então que, num ápice, ele
estendeu as mãos em direção ao meu pescoço. Talvez porque estivesse à espera,
ou não, desviei-me e fiquei com as suas mãos agarradas à minha roupa. Uma no
ombro e outra na minha camisola junto à gola da camisa. À distância de um
braço, sentia a tensão e a força que o homem exercia sobre o meu corpo. De
repente dei por mim a calcular o que poderia fazer naquela circunstância.
Perigo não corria, sou ágil, pratico uma arte marcial e sinto-me em forma E
mais, no mínimo ainda me consigo entender com um velho e presumivelmente
bêbado. Para minha defesa, agredir o homem ficou para última decisão –até
porque não sou capaz de o fazer sem que alguém o faça primeiro. A minha
primeira determinação foi tentar safar a minha camisola nova que me tinha
custado um dinheirão há pouco tempo. Optei pelo apelo à serenidade. Tenha calma, que não lhe quero fazer mal!
Tenha calma! Repeti até à exaustão e durante minutos que pareceram uma
eternidade. Até que consegui livrar-me das suas garras. Virei costas e deixei
lá o presumível monstro a falar sozinho. Como se não entendesse por que o
abandonei, o homem apelava: “ó vizinho,
ajude-me! Ó vizinho!”. Com o meu coração a bater fortemente, continuei a
ouvir o chamamento do animal em jeito de homem até ao virar da esquina onde
mergulhei na escuridão.
UM ESTUDO ACADÉMICO
Confesso, fico sempre irritado com estudos
como aquele publicado no jornal Público, em 6 do mês passado. No caso, “Um estudo da Universidade de Coimbra conclui
que se "apagou a História" da fachada de cerca de um quarto dos
edifícios da Alta de Coimbra na reabilitação feita nos últimos 15 anos.”
É certo que valem o que valem mas vão sempre
influenciar quem decide. Porque a questão é: num tempo em que não há dinheiro
para restaurar seja o que for poderemos compatibilizar a arquitetura antiga,
muito mais cara, com a identidade histórica? Os teóricos vão dizer que sim! Em
analogia, muitos especialistas de nutrição também afirmam que num lar, com
quatro agregados, onde entram 400 euros também se come mal. Pois come! Mas, não
havendo dinheiro, como se pode fazer uma alimentação equilibrada e racional?
Tenho sempre muita dificuldade em compreender
certos ensaios como este, sobretudo quando temos à nossa volta prédios e mais
prédios a cair. Devemos aumentar a dificuldade do restauro? Ou, pelo contrário,
tendo em conta o estado de necessidade,
deveremos aligeirar os procedimentos e ir ao encontro do maior ganho possível?
Porque, mais uma vez, estamos entre escolher dois males: o menor e o maior.
Ora, vendo este caso, qual é o mal menor? Continuar a criar dificuldades a quem
ousa restaurar um edifício nestas partes velhas? Exigindo cada vez mais obrigações
sem dar quase nada? Será oferecendo as tintas e licenciamento gratuito dos
andaimes que se consegue o milagre da revitalização? A preservação histórica
caberá apenas aos particulares? E o Estado? Cabe-lhe somente legislar e cobrar
impostos absurdos sobre o património? Tanto quanto sei, já há proprietários
nestas áreas de antanho a quererem oferecer prédios e, pelo que li, há muitos casos
que nem assim, de borla, são aceites.
Com todo o respeito por este trabalho
académico, tenho horror a puristas. A história ensina-nos que nas virtudes públicas vícios privados. Sem
colocar este estudo de fora, porque tem uma importância relativa, sobretudo na
habitação, em vez de se procurar ser escravo do passado, a meu ver, dever-se-ia
criar mais condições de simplificação na revitalização de edifícios em zonas
históricas. As últimas décadas mostram bem no que isto deu –com várias
entidades a opinar, contrariando-se até, e a dificultar até para mexer numa
simples telha. Os exemplos estão à frente de todos nós. Não é preciso ser
especialista para saber que quanto mais se apertar a rede menos “loucos” se disporão a atravessá-la e, no
final, os estragos para a sociedade são incomensuráveis.
Sem perder um pouco da nossa identidade
histórica, sobretudo num sector que cai aos bocados na monumentalidade
particular, devemos ter o bom senso de não sermos prisioneiros de um tempo que
o foi simplesmente porque não havia os materiais de substituição que existem
hoje. Normalmente quem mais fala de teses e anti-teses sobre estas zonas de
antanho não mora aqui nem sabe nada do que por cá se passa. Se seguíssemos as
suas opiniões estas casas antigas ainda eram obrigadas a manter pias de pedra
em vez de sanitas. É com base neste radicalismo que continuamos a ser obrigados
a ter janelas de madeira, que para além de não permitirem vidros duplos,
deixando passar o frio, e se deterioram em meia dúzia de anos, quando há materiais
iguais na conformidade que duram uma vida.
Temos de escolher entre ter moradores, felizes
com todas as comodidades, harmonizando o custo/proveito no fim que se deseja, ou
continuarmos a perseguir o passado, com absurdos, e, como neste caso, termos
estas zonas velhas esboroadas e completamente vazias de residentes. É que é
preciso não esquecer que os custeios da revitalização estão na razão direta da
sua desertificação habitacional.
O COSTA, DE CÁ
O António Costa, de cá, é pintor nas horas
vagas e empregado de mesa no Café Santa Cruz a tempo inteiro –ou o contrário,
nem sei! O que sei é que nos tempos mortos e nos períodos inteiros não promete
nada que não possa cumprir. É um Costa de costado largo, simples mas agarrado a
velhos conceitos a que muitos teimam em chamar valores. Pode até pensar-se que
este Costa, que está nesta costa de terra calma e urbanizada, enfiou a boina
para se colar ao Syriza e, de peito feito
dizer que está ao lado dos gregos e contra a ditadura dos especuladores dos
povos europeus. Podemos pensar em tudo, lá isso podemos! Mas sobre o que
podemos e não podemos, sobre a Grécia, Espanha e outros tantos como nós que se
arrastam na berma do precipício existencial da pobreza, eu não conversei nada
com o Costa, deste lado da costa! Só quis mesmo deixar a sua fotografia
vanguardista.
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