quinta-feira, 27 de setembro de 2012

LEIA O DESPERTAR...



LEIA AQUI O DESPERTAR DESTA SEMANA 

Para além  do texto "Feira de Velharias pede remodelação", deixo também a crónica "A última montra".




FEIRA DE VELHARIAS PEDE REMODELAÇÃO

 Na década de 1990, durante alguns anos, vendi em feiras de velharias. É possível que repita, mas, mesmo que não volte a acontecer, do ponto de vista humano foi uma experiência muito rica. Para além de travar conhecimento com imensos vendedores esforçados, que vinham de Lisboa e outros do Porto para ganharem uns cobres para fazerem face à sua vida difícil, conheci outros, tais como, professores, engenheiros, funcionários públicos, e cuja necessidade era meramente o contacto com os objetos antigos. Como se estivessem numa festa, frequentavam os certames como vendedores, mas compravam mais do que vendiam.
Enquanto andei por lá de terra em terra, deu também para apreender que o vendedor de velharias era sempre desconsiderado por todos, pelos colegas, pelos compradores e, sobretudo, pelas entidades camarárias que, como atores de um teatro cénico para alegrar o povo e revivificar o lugar, se serviam deles gratuitamente e o pagamento era a desconsideração contínua a raiar a humilhação. Resultado de um costume implacável, que sempre os colou ao “ferro velho”, poucos sabem o valor que estas pessoas representam para a cultura nacional, para que esta, na memória, não se perca nas amálgamas dos vazadouros. O vendedor de velharias é um carismático recuperador do passado. Mais, na maioria dos casos, o que o move é o sentido da utilidade social e menos o interesse monetário que possa advir de um qualquer bem que se enamorou num primeiro olhar. Estas pessoas, bem ao género do “Livreiro de Cabul”, são generalistas e apaixonados pela arte em geral. Gostam de tudo o que seja diferente, desde que toque os seus sentidos, e fuja ao comum.
Toda esta longa introdução para dizer que a feira de velharias da cidade, que se realiza ao 4º sábado de cada mês, na consideração para quem ali vende, segue um pouco o quadro que ilustro em cima –este certame é dos mais antigos da zona centro e surgiu com uma intenção meramente sociocultural, em 22 de junho de 1991, na sequência das atividades de final de ano escolar da Escola Silva Gaio, com a designação de Feira dos Trastes, tendo tido o apoio do Departamento da Cultura e de “O Velhustro”. Passou a chamar-se Feira de Velharias de Coimbra e passou a ter uma Comissão de Feira que era composta pela Câmara Municipal de Coimbra/Departamento de Cultura (CMC/DC); Junta de Freguesia de São Bartolomeu (JFSB); Polícia de Segurança Pública (PSP); Escola C+S Silva Gaio; GAAC, Grupo de Arqueologia e Arte do Centro; e “O Velhustro” –segundo o site da edilidade, atualmente esta comissão é composta pelo estabelecimento “O Velhustro”, a CMC/DC; a PSP; e a JFSB.


Na feira de Coimbra há vários anos que, fruto da sua longevidade, se assiste a uma natural degradação relacional entre a Comissão de Feira e os expositores –sobretudo os mais novos. Como desde há vinte anos nunca se expandiu do mesmo local de origem, a Praça do Comércio, e a procura de lugares por parte dos vendedores aumentou, tem levado, essencialmente na última década, a uma tensão contínua entre eles. As histórias de favorecimento de atribuição de lugares a troco de “prendinhas” –o tão tradicional “abre-te sésamo” português- já se avista de longe. O “diz que disse”, sem que ninguém desse a cara, já vem desde o princípio deste milénio. Como não havia marcação de lugares fixos levava a que, em condições indignas, muitos vendedores ali passassem a noite ao relento. O que me levou a escrever na “Coluna do Leitor”, do Diário de Coimbra, em 9 de novembro de 2003, um texto com o título “Condições da Feira das Velharias” e que mereceu uma réplica no mesmo jornal do então vereador da Cultura, Mário Nunes. Para além desta resposta pública recebi um ofício em que me era comunicado que “Quanto ao espaço físico, cabe informar que face ao elevado número de expositores inscritos na Feira, cerca de 300, bem como outros que frequentemente desejam ter acesso à mesma, a Praça Velha se torna limitada. Para obviar esta situação, tem-se procurado sensibilizar os expositores a estender-se ao largo do Romal, mas sem sucesso, atendendo a que se queixam que os compradores não se deslocam à área. (…) A fixação de lugares, no entender da citada Comissão, não traz vantagens num espaço tão exíguo, dado que a cativação do lugar, no caso de esse expositor faltar, não deixa oportunidade para colocar outro no seu lugar, o que não se considera justo.”
Posteriormente, um mês depois, em 20 de Dezembro do mesmo ano, fiz uma exposição particular ao então vereador a dar-lhe conta da falta de consideração a que os vendedores estavam sujeitos, incluindo maus-tratos verbais, e várias ideias que tinham a pretensão de alargar a outras artérias da Baixa e revitalizar este evento –em paridade, tive resposta do vereador Mário Nunes em carta particular. Quase uma década passou e tudo continua na mesma. Na mesma não. Pior!


Neste último fim-de-semana, no sábado de feira, por acaso, escutei uma conversa entre vendedores que não conhecia. Apresentei-me e perguntei se, em defesa da sua tese, estavam dispostos a “dar a cara”. Caso se identificassem eu escreveria os seus lamentos e encaminha-los-ia para quem de direito. Desse grupo uma senhora aceitou. Depois fui falar com outros. Identificando-se também, dois deles disseram abertamente que para obterem lugares já recorreram à “prendinha”. Porque admitisse que pelas insuficientes alegações poderia estar a ser injusto, no dia seguinte, fui à feira de velharias de Aveiro e ouvi o depoimento de mais meia-dúzia de operadores. Alguns destes confirmaram que a atribuição de lugares em Coimbra era duvidosa sob o princípio da equidade.
Pode ser que desta vez se varra a poeira da calçada da velha praça.



A ÚLTIMA MONTRA

 Naquele frio inverno de há dois anos assisti ao seu parto difícil, como difícil é materializar algo que se imaginou durante anos, dias e noites sempre a fio. Se fosse fácil realizar o sonho provavelmente ninguém perderia tempo a sonhar, nem acordado nem a dormir. Idealizar acordado é um exercício da vontade, em pensamento racional e na ambição do querer; fantasiar a dormir é uma experiência incontrolável, da imaginação do inconsciente. Segundo Freud, os sonhos noturnos são gerados na busca de desejos, ou medos, reprimidos. Não se sabe ao certo, mas especulo que a realização de algo apetecido e engendrado durante muito tempo será sempre uma mistura na confluência da noite e do dia, e quanto mais amargo e difícil for a sua concretização, e o desejo se alongar, mais doce será o seu alcançar.
Naquele novembro passado, nasceu na Rua do Corvo mesmo em frente à Ricarlina. Aquele estabelecimento era uma “menina” traquina, de olhos vivos, doces, e muita, muita, cor. Se lhe pudéssemos escolher uma graça, um nome, poderia ser Primavera símbolo de vida e regeneração-, Sol –modelo de luz e multiplicação-, Lua –paradigma da beleza e do amor eterno. Mas não, a sua “mãe”, a Andreia Ferreira, uma jovem que ousava acreditar nas estrelas, escolheu um nome invulgar: Maquarie –o que também não conflitua, tendo em conta a analogia à ilha no Pacífico. Afinal, produzir uma ideia, no fundo, é uma ilha no oceano societário. Aquele “rebento” para a sua criadora era a alma do seu viver. Era uma extensão do seu ser em cordão umbilical. Em espírito, um pouco como o seu primeiro filho. Era o mostrar ao mundo que o homem sonha e obra nasce, e é nesta grandiosidade de coisa que o humano mostra a sua utilidade social. Uma construção feita em tijolo e argamassa, idealizada nos interstícios da mente, de uma jovem que, durante muitos anos, foi empregada num grande centro comercial e tantas vezes pensou: “um dia vou ter o meu negócio!”


Mas o sonho não durou. Aquela outrora montra brilhante, onde se “encontravam peças de autor e de artistas de criatividade ímpar, criadores que amavam o que faziam, artesãos que aliavam saberes e técnicas tradicionais e modernas, pessoas que se empenham no perfeccionismo dos pequenos detalhes”, nesta última semana, apareceu forrada a papel pintado à mão e representando flores e passarinhos a voar. Nesta imagem apologética, em palavras de silêncio, a quem tiver um minuto de olhar, quer dizer que a “Maquarie pretendia promover a consciencialização e sensibilização comum para o valor real de cada objeto” e, como quem parte sem escolher o seu destino, “se despede com a consciência de tudo o que ainda há por fazer e sentimento do dever não cumprido.”
Na porta principal, a ilustrar que as palavras escritas podem perpetuar a dor eterna, um poema rima assim: “Sentes um tempo que acabou/primavera de flor adormecida/ qualquer coisa que não volta, que voou/ que foi um rio, um ar na tua vida”. “Sabes o desenho do adeus/ é fogo que nos queima devagar/ e no lento cerrar dos olhos teus/ fica a esperança de um dia aqui voltar.”
Se vivêssemos numa sociedade mais justa e perfeita, menos individualizada e egoísta, submissa ao sucesso, e que fosse mais preocupada com a vida do que com a morte, certamente que no empreendedorismo, nas escolas públicas, na Universidade, se apoiariam totalmente os iniciados que dão os primeiros passos nos trilhos do futuro e da esperança. Mas infelizmente é o contrário. Aos principiantes, como prova de competência apriorística e absurda, que são examinados sem terem tempo de mostrar o que valem, fecham-se todas as portas, liquidam-se todas as quimeras. Aos outros, que caminham eretos e insensíveis na solidariedade humana e apenas com os olhos postos no seu enormíssimo ego, abrem-se portões, janelas e alçapões. Como se fosse pouco, ainda se idolatra o seu percurso, mesmo que o êxito tenha sido à custa da exterminação de muitos. Quantos sonhos se enterram vivos, cheios de pujança, com tanto para dar, e sem direito a epitáfio? Será que, neste aceitar pacificamente sem questionar, não somos todos coveiros?



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