LEIA AQUI O DESPERTAR DESTA SEMANA
Para além do texto "A cidade da cruz ao peito", deixo também os textos "Hébil, o pintor maldito" e "Reflexão: Habemus fé".
(imagem de Leonardo Braga Pinheiro)
A CIDADE DA CRUZ AO PEITO
O Diário de Coimbra (DC) do
último domingo noticiava: “Adjunto demite-se após “ofensa” no Facebook”.
Continuando a citar o DC, “O adjunto do presidente da Câmara de Coimbra, João
Francisco Campos, apresentou ontem a demissão do cargo que ocupava há cerca de
ano e meio na sequência de um comentário que colocou há poucos dias na sua
página do Facebook. No dito comentário, depois de recordar momentos em que
alertas feitos pelo PSD foram desvalorizados e até criticados pelos eleitores
(dá o exemplo de Manuela Ferreira Leite), João Francisco Campos termina com a
frase: “Agora esse mesmo Povo, ou parte dele, queixa-se que afinal o Rei vai
nu. Vão p’ro carvalho.”
Continuando a citar o DC, “A
polémica terá levado vários elementos do partido, e não só, a chamarem a
atenção do presidente da Câmara e, segundo o Campeão das Províncias, um
munícipe dirigiu mesmo uma carta a João Paulo Barbosa de Melo a exigir uma
posição deste. O presidente da Câmara de Coimbra esteve ausente do país,
regressou ontem de manhã e ao final da noite chegava às redações a confirmação
de um desfecho que se assumia, nos últimos dias, inevitável.” –ao lado, em
coluna assinada pelo próprio, João Campos, em título “Não era minha intenção”,
pede desculpa a quem “por ler o meu texto, se sentiu ofendido pelo que disse.”
Ora bem, antes de prosseguir com
a minha prosa, em metáfora, começo por mergulhar o bastão no balde água benta e
aspergir sobre João Campos –que não conheço. Ao mesmo tempo, como se estivesse
a executar um ritual de exorcismo, expulsando os demónios da desvirtude e
purificando-o da influência impura ou nociva do desvio, lanço estas palavras:
“eu te absolvo pecador arrependido, para que salves a alma e o espírito de quem
te obrigou a passar por penitente!
Agora, depois desta ressalva em
jeito de ironia –e que ninguém se ofenda, caso contrário, como não tenho
partido e não me posso demitir, ainda vou malhar com o cabedal no pelourinho da
Praça do Comércio-, vou escrever mesmo em tom sério. Em todos os lugares
habitados do mundo existe sempre uma Dona Pombinha –quem não se lembra desta
figura na telenovela “Roque Santeiro”, que passou por cá entre 1985/86? É uma
figura emblemática, defensora da moral e dos bons costumes. Purista dos sete
costados, tudo para esta personagem é ofensivo ao Criador. Ora, em analogia,
não vou designar ninguém com este estapafúrdio apelido, mas depois do celebérrimo
caso do ex-comandante da Polícia Municipal, Euclides Santos, em que este, por
engano, enviou a todos os funcionários da autarquia as boas festas com mulheres
seminuas, e em que foi demitido, dá para perceber que estamos perante outra
narrativa de desfecho similar. Será que ninguém vê que acontecimentos destes,
sendo tão insignificantes, dando-lhes uma importância desproporcionada e
desmesurada, só tornam ridículos quem os decide sancionar? É que para risível,
com graves custos pessoais e familiares, já deveria ter chegado os irreversíveis
danos causados na imagem de Euclides Santos –e foram enormes. Incomensuráveis. Não
escrevo ao sabor da pena, porque tenho conhecimento dos seus efeitos. Foi uma
bomba de neutrões na sua intimidade. É caso para interrogar: as pessoas com
responsabilidade perderam o bom senso? Foi? Onde para o tão apregoado respeito
pela liberdade de expressão?
Era altura destes responsáveis,
nomeadamente políticos eleitos, tomarem conta de que são tão pecadores como
qualquer um e, numa hipocrisia consentida, despirem o capote de virgens
imaculadas. E, sobretudo, depois de o substituírem pela tolerância, largarem
esse malfadado sentimento masoquista de “postura de Estado, “sentido de
responsabilidade”, que para além de ser inibidor e auto censório é uma arma de
dois gumes que atinge todos e, a continuar, jamais se saberá onde acaba. Além
de mais, era bom saberem que os eleitores querem olhar para eles como terrenos,
homens que bebem uns copos nas tascas, dizem umas asneiras, em bom vernáculo,
se preciso for. Querem pessoas humanas, vulneráveis, na mesma semelhança, com
os mesmos gostos e vícios, e não seres puros e metafísicos. Para isso, para se
embarcar na transcendência, vai-se à igreja. Pelos vistos, quase quatro décadas
não ensinaram nada aos políticos profissionais da nossa terra. Bem sabemos que
aparentemente, no geral, os cidadãos, todos, clamam por imagens de virtude.
Mas, quem anda por cá há muitos anos e observa o que se passa à sua volta, sabe
que os humanos, verdadeiramente, nunca expressam claramente o desejo na sua
vontade. Pedem uma coisa mas querem outra. É preciso usar de hermenêutica para
os entender.
Se Diácono Remédios, o personagem
criado por Herman José, existisse e viesse a Coimbra diria: “Valha-os Deus,
criaturas!”
(Foto do diário de Coimbra)
HÉBIL, O PINTOR MALDITO
Parece-me estar a vê-lo a
transpor a porta. Num passo pausado, mas firme, que a sua vetusta idade não
permite grandes velocidades, apoiado na sua inseparável bengala de cabo em
prata, caminha na minha direção. De rosto longo, de aparente tranquilidade e
bonomia reflexiva, salientam-se dois olhos pequeninos, algumas vezes
semicerrados, perscrutadores e atentos ao mínimo pormenor, como, por exemplo, o
bater de asas de uma borboleta. Sublinhados por duas espessas sobrancelhas, um
meio sorriso enigmático ilumina a sua face um pouco austera. Um conjunto de fato,
já com muitos anos de andanças, camisa e um inseparável laço, para além de
fazer dele um pachorrento avô, transportando-nos para umas décadas anteriores, dão-lhe
uma aura de personagem de mistério. Chega ao pé de mim e pergunta: “e o
comércio? Como é que está? Já vendeu alguma coisa hoje? Não se esqueça que tudo
tem o seu momento. Um negócio é como um casamento. É preciso ter paciência e
saber esperar. Nada de precipitações. É necessário ter os olhos bem abertos,
está a ouvir? A maioria que por aí anda nem sabe nada nem vê nada!”. Mergulha a
mão no grande bolso lateral do casaco, “olhe aqui esta magnífica peça que
acabei de comprar –e mostra-me um relógio de bolso antigo em plaqué-, o
estúpido do vendedor nem soube o que me vendeu. Você sabe lá o que está aqui?”.
Retira de outra algibeira uma folha fotocopiada replicada provavelmente do “Benezit”,
“este relógio, quase de certeza, pertenceu a Marcel Proust no virar do milénio
para o século XX. Olhe aqui. Olhe aqui! Gosta, não gosta? Pois, mas isto não é
para o seu dente. Você não tem categoria para adquirir uma peça de arte
destas!”. Passado um bocado estava a tentar vender-me o relógio. Era assim
Alberto Hébil.
Falecido em 2 de Agosto de 1998,
foi um renovador nas artes plásticas, em Coimbra e no país. A sua obra
estende-se desde o figurativo e paisagístico até ao expressionismo e abstrato.
São célebres e constituem a sua essência artística os “noturnos”, as
“procissões” e os “retratos”. Parafraseando o Diário de Coimbra (DC) a noticiar
o seu desaparecimento na época, “Com 85 anos, o decano dos artistas da Lusa
Atenas lega uma obra ímpar, onde não faltou “uma revolução artística nos campos
da pintura e da escultura.”
Foi mentor de Mário Silva, de
Santana Alho e tantos, tantos, outros pintores a quem, com os seus conselhos
bem vincados de ânimo, empurrava para que não desistissem de criar. Este grande
pintor que conheci bem nasceu em Arouca, em 1913. Depois de passar pela
academia de Belas Artes de Paris, em 1930, em que foi aluno de Marcel Thuiller,
veio viver para Coimbra. Em 1968, na Quinta Avenida, em Manhattan, Nova Iorque,
inaugurou uma galeria, a que chamou “Coimbra Gallery Modern”. Este seu feito
internacionalista constituía a sua alma materializada, a sua bandeira
existencial, e, com muita garbosidade, o levava a afirmar sem peias: “eu sou o
maior pintor do mundo! O resto, os que andam para aí, são uns idiotas! Não
passam de uns coimbrinhas!”
Não escrevo sobre Alberto Hébil
por acaso. É que considero que, quer em vida quer depois da sua morte, nunca lhe
foi atribuído o legítimo e devido valor que mereceu. Foi esquecido e tratado
como pintor maldito. É curioso lembrar que Mário Nunes, que, neste milénio,
durante dois mandatos, foi vereador da Cultura da edilidade coimbrã, na hora do
desaparecimento físico de Hébil, em 1998, e na qualidade de presidente do GAAC,
Grupo de Arte e Arqueologia do Centro, no DC dizia que “lamenta, porém, que a
Câmara Municipal de Coimbra não lhe tenha dado o galardão de mérito cultural e
artístico; merecia-o pelo muito que fez pela arte e pela renovação das artes
plásticas de Coimbra e do País”.
Aprendi muito com Hébil, mas o
que mais me prendia e seduzia era a sua personalidade “sui generis”. Era uma
figura carismática e um teimoso nato. Tinha um ego mais alto que a torre da Universidade.
Agarrava-se a uma ideia, defendia-a até às últimas consequências, e se fosse
contraditado, arrumava a questão subliminarmente: “você é um ignorante. Não
percebe nada!”. Defendia teses que ninguém acreditava nelas a não ser ele
próprio, ou, se calhar, nem ele mesmo. O que mais me impressionava nele era a
sua ratice e a sua incomum dupla qualidade de artista e comerciante de
excelência. Conhecia o género humano, nas suas fragilidades e pontos fortes,
como ninguém. Sempre que o meu trabalho o permitia, passei muitas tardes a
conversar com ele, sentados, em frente à minha loja. Impressionou-me tanto esta
convivência que, em sua honra, compus um poema e musiquei-o. Em gravação, tive
ocasião de lho dar a ouvir ainda em vida. Pareceu ficar enternecido. Ficará
para sempre gravado na minha memória. Pela sua construção pictórica, Hébil tem
um lugar intemporal cativo na nossa história. Coimbra está em dívida para com
ele.
(Imagem de Leonardo Braga Pinheiro)
REFLEXÃO: HABEMUS FÉ
Não é a primeira vez que escrevo
sobre o facto de a Baixa, apesar da grande crise económica que estamos
atravessar, numa renovação contínua, persistir em ser um espaço muito
apetecível e procurado por novos investidores. Se é certo que, tal como
anunciei aqui, no último mês encerraram três estabelecimentos, em
contrapartida, por estes próximos dias, em compensação, outros quatro
far-nos-ão companhia. Tenhamos esperança nos tempos que se avizinham.
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