quinta-feira, 13 de setembro de 2012

LEIA O DESPERTAR



LEIA AQUI O DESPERTAR DESTA SEMANA 

Para além  do texto "A Primark e as fardas de Mao", deixo também o texto "A obsessão pela imparcialidade ".

A PRIMARK E AS FARDAS DE MAO

 Comecei a trabalhar no comércio em 1973, na desaparecida Casa S. Tiago, na Praça do Comércio. Tinha então 16 anos, lembro-me, na Baixa, havia muitas casas de tecidos a metro. A rua do Corvo, salvo um grande armazém de mercearias e uma ou outra retrosaria, eram os cortes o forte dos seus estabelecimentos. A própria loja onde eu fui assentar praça tinha uma grande secção no primeiro andar. O primeiro cliente que atendi, sem perceber patavina, foram dois metros de uma caxemira que não recordo bem. Por aqui, por estas ruas estreitas, havia muitos alfaiates e costureiras, modistas, como se dizia na época, porque era mais fino. Uma grande parte das roupas era feita por medida. Embora o pronto-a-vestir já estivesse implantado ainda crescia devagar e de forma incipiente. Havia dois géneros de consumidor, um, o do corte por medida, sobretudo a mulher, era um cliente elitista e mais exigente com a roupa que vestia. Tinha mais poder de compra e ousava na singularidade. Sobretudo a feminina, comprava revistas de modas –Modas e Bordados e outras- e, com alterações da obreira do corte e costura, procurava que os seus modelos fossem distintos de todos os demais. O outro, o cliente da roupa feita em série, maioritariamente, era constituído pelos assalariados com pouco poder de compra. No entanto, apesar da simplicidade, todos fugiam à farda militar. Isto é, exceptuando o fato-macaco azul e normalmente usado por mecânicos, procuravam distinguir-se uns dos outros. Nessa altura já havia marcas importadas, mas poucas. Recordo, em calças, a Lois, a Lewis Straus, a Wrangler e em camisetes a Lacoste. Porém, eram tão caras que só uma pequena fatia da sociedade tinha acesso. Custavam praticamente um quarto do salário de um operário.
Veio o 25 de Abril, o “ordenado mínimo” passou de mil escudos (5 euros) por mês para três contos e trezentos (16,50 euros) e, de repente, deu-se um ataque fortíssimo de fregueses às lojas de comércio. Compravam tudo, indiscriminadamente. Muitas vezes não havia artigos para vender –já para não falar em frigoríficos, televisões e automóveis em que era preciso estar meses à espera. Progressivamente o pronto-a-vestir, com a abertura de várias fábricas nacionais, invadiu o mercado com artigos de grande qualidade e foi encostando os tecidos a metro às boxes. Por sua vez, devido ao poder de compra da população em geral, começou a assistir-se a um gosto mais refinado por parte dos compradores –lembro-me muito bem dos habitantes de São Mamede, uma aldeia ali para os lados de Penacova, quando adquiriam algo para vestir nunca poderia ser igual ao vizinho. “Tinha de estar na moda”, como enfatizavam. Era um contorcionismo imenso para lhes conseguir vender uma peça de roupa. Tinha de ser mesmo original. Quando detetavam um fato que já lá havia um igual na terra, interrogavam o vendedor se queria vesti-los todos iguais, como os chineses de Mao (Tse-tung).
No princípio da década de 1980, apesar de uma grande crise, sobretudo inflacionista, as grandes marcas de roupa já davam cartas para uma população mais endinheirada e acima do comum. Esta opção pela distinção foi, no fundo, o seguimento, em substituição, do cliente do vestuário por medida. Mais uma vez, nesta década, se assistia uma bipolaridade no adquirente de roupa. Embora em menor número, de um lado o abastado que comprava as grandes marcas caríssimas e do outro em maior expressão os trabalhadores a angariarem a roupa mais barata –habitualmente cópias das grandes marcas, mas com outro nome. Sem dados estatísticos, creio que a década de 1990 teria sido talvez a época onde se assistiu a um equilíbrio maior no vestir com gosto e qualidade entre as duas classes, o trabalhador e o burguês, digamos assim. As fábricas nacionais de têxteis, creio, nesta altura, tocaram também o apogeu comercial.
A partir de 1994, com a adesão de Portugal à Organização Mundial de Comércio, e com a entrada de artigos chineses, começou a razia nas fábricas nacionais de ferramentas e outros artigos utilitários, como, por exemplo, guarda-chuvas –os têxteis ficaram salvaguardados até 2004. A partir desta data foi o descalabro no encerramento de fábricas nacionais.
Paulatinamente, e curiosamente, talvez devido ao cada vez menor poder de compra os portugueses começaram a vestir cada vez pior e deixou de haver, acentuadamente, duas classes na escolha de artigos para vestir. Maioritariamente passamos todos a vestir “made in China”.
E lembrei-me de tudo isto porque, há dias, fui visitar o Primark, ao Fórum Coimbra, e recentemente aberto. E o que vi lá? Para já montanhas de pessoas a comprar artigos baratos –vi isto em 1994, quando abriu em Coimbra a primeira loja de 300, na Rua das Padeiras, e em que as pessoas faziam fila para entrar. Foi um “remake”, um voltar atrás, que assisti ontem.
Tal como as ferramentas chinesas de há cerca de vinte anos, vi no Primark camisolas a 3, 5, 10 euros, com malhas de pouquíssima qualidade. Casacos a 25 euros, muitas calças a 5 euros e algumas a 10 euros. Muitos sapatos, sobretudo de senhora, onde é saliente uma maior oferta em geral. Vi então que as pessoas, contrariamente a outros tempos, em que primavam pelo bom gosto, agora, não se importam de andar todos vestidos de igual, à Mao Zedung, desde que seja barato. Perante o meu olhar, perdeu-se de vez o interesse pelo bem vestir –é evidente que poderíamos partir daqui para outras projeções analíticas massificadas da coletividade, mas o texto já vai longo, no entanto, dá para apreender uma formatação etno-cultural, no trajar. Através do baixo preço, entrámos numa colonização de fardamento de filosofia oriental. Nesta homogeneização, entre outros costumes, estamos cada vez menos diferenciados. Nesta massa humana, a diversidade cultural perde cada vez mais terreno. Estamos cada vez mais iguais ao vizinho. Também é notório que, talvez pelo pouco dinheiro disponível, a qualidade não interessa nada. O que importa é andar tapado.
Não deveria terminar esta crónica com toque pessimista, mas não consigo dar outro. Embora estejamos perante uma “feira do Norton de Matos” em larga escala e em que, pela sobreprodução mundial, os produtos tenderão para embaratecer cada vez mais, o problema é que, infelizmente intui isso, esta grande área, desta marca Irlandesa, vai arrumar a Baixa ainda mais depressa. Aguardemos com a serenidade possível.


A OBSESSÃO PELA IMPARCIALIDADE

 O semanário Campeão das Províncias da semana passada noticiava que a concessão do café “Cartola”, “sito na Praça da República, Coimbra, deverá facultar à Câmara Municipal (CNC) uma receita anual aproximada a 140 000 euros. O montante é quase oito vezes superior ao da concessão cessante (…). À proposta mais baixa correspondia uma receita inferior a 25 000 euros.” –o Diário de Coimbra (DC) de hoje escreve que o montante a pagar por mês será de 14.426,21 euros. O que dá um valor anual de 173.114,52 euros. Acrescenta também o DC que a segunda melhor proposta era de pouco mais de oito mil euros e as seguintes de seis mil euros e 4.600,00 euros.
Como ressalva, declaro que nem conheço os novos adjudicantes nem nada me move contra o sucesso de terem saído vencedores nesta oferta pública promovida pela CMC. O que gostaria de analisar é a forma deste concurso e de outros no mesmo género e desencadeados por instituições públicas. Quase sempre, a ordem seguida é a de aceitar ofertas sem base mínima. Como se sabe, este procedimento carrega consigo uma obsessiva preocupação de isenção. Pelo que se apregoa, supõe-se que mesmo que a verba afetada pelo particular possa raiar o absurdo a entidade pública, como Pilatos, lava daí as suas mãos. Tão pouco lhe importa que a importância prometida possa jamais ser consignada em depósito pela incapacidade de ressarcimento no negócio. Em nome de uma neutralidade perdida no horizonte, assim se desliga completamente da realidade e parte para a ficção.
Todos sabemos que, pelo Código de Procedimento Administrativo, todos os organismos públicos estão vinculados, entre outros, ao princípio da imparcialidade. Ou seja, as regras, através da equidade, têm de respeitar todos por igual no acesso, sendo portanto a probidade um meio, e de modo a que todos, nas mesmas condições, possam atingir um fim.
O problema começa quando esta imparcialidade, perdendo o espírito independente, se transforma em obsessão igualitarista, deixa de ser um meio e passa a ser totalitariamente o objeto da ação. Isto é, larga o âmbito racional e passa para o campo metafísico da sobreavaliação. Ao transcender a realidade, sem se aperceber, discrimina negativamente a maioria e, aparentemente, favorece uma ínfima minoria. Mais, para além de não levar em conta a competência dos candidatos e arriscar nada receber e tudo perder, neste “dolce far niente”, deixando a decisão a jusante, para quem concorre, inflaciona despudoradamente em seu proveito próprio a prova. Porque é preciso não esquecer que uma entidade estatal, para além de estar obrigada também ao princípio da boa-fé, na prossecução do serviço público, contrariamente aos privados, não visando unicamente o lucro, o fundo social é (deveria ser) a sua meta, e aquele, o proveito, em bom rigor, é uma consequência remanescente da sua atividade. Ao não ser consequente com este primado está a comportar-se como um mero especulador.
Vou ser mais claro, socorrendo-me deste exemplo da concessão do “Cartola”. Seguindo o Campeão das Províncias, o atual concessionário pagará anualmente cerca de 17 500,00 euros. Por conseguinte a CMC, tendo em conta a crise que se vive, deveria estabelecer um preço fixo igual ou não muito distante desta verba e, publicitando o acesso a todos os munícipes que o desejassem, em tômbola, seria sorteado o vencedor –que é o método, aparentemente, praticado para a atribuição de habitação social. Ao não proceder assim, deixando a oferta ao sabor de vontades individuais, em abstrato, estará sempre a excluir o utilizador de uso. E ainda mais um pormenor, neste caso a verba oferecida pelo novo adquirente é de oito vezes mais. Sem querer pretender ser ave de mau agoiro, mas imaginemos que, no futuro, se verifica incumprimento e os créditos vencidos se tornam incobráveis. Sendo a edilidade a representante dos munícipes e estando mandatada para o efeito, quem responde pelo prejuízo sofrido perante a má opção anteriormente tomada?




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