(Este postal é de 1973. Atente-se que todas estas mulheres do povo vestem de forma desigual)
Comecei a trabalhar no comércio
em 1973, na desaparecida Casa S. Tiago, na Praça do Comércio. Tinha então 16
anos, lembro-me, na Baixa, havia muitas casas de tecidos a metro. A rua do
Corvo, salvo um grande armazém de mercearias e uma ou outra retrosaria, eram os
cortes o forte dos seus estabelecimentos. A própria loja onde eu fui assentar
praça tinha uma grande secção no primeiro andar. O primeiro cliente que atendi,
sem perceber patavina, foram dois metros de uma caxemira que não recordo bem.
Por aqui, por estas ruas estreitas, havia muitos alfaiates e costureiras,
modistas, como se dizia na época, porque era mais fino. Uma grande parte das
roupas era feita por medida. Embora o pronto-a-vestir já estivesse implantado
ainda crescia devagar e de forma incipiente. Havia dois géneros de consumidor, um,
o do corte por medida, sobretudo a mulher, era um cliente elitista e mais exigente
com a roupa que vestia. Tinha mais poder de compra e ousava na singularidade.
Sobretudo a feminina, comprava revistas de modas –Modas e Bordados e outras- e,
com alterações da obreira do corte e costura, procurava que os seus modelos
fossem distintos de todos os demais. O outro, o cliente da roupa feita em
série, maioritariamente, era constituído pelos assalariados com pouco poder de
compra. No entanto, apesar da simplicidade, todos fugiam à farda militar. Isto
é, exceptuando o facto-macaco azul e normalmente usado por mecânicos, procuravam
distinguir-se uns dos outros. Nessa altura já havia marcas importadas, mas
poucas. Recordo, em calças, a Lois, a Lewis Straus, a Wrangler e em camisetes a
Lacoste. Porém, eram tão caras que só uma pequena fatia da sociedade tinha
acesso. Custavam praticamente um quarto do salário de um operário.
Veio o 25 de Abril, o "ordenado
mínimo" passou de mil escudos (5 euros) por mês para três contos e trezentos (16,50
euros) e, de repente, deu-se um ataque fortíssimo de fregueses às lojas de
comércio. Compravam tudo, indiscriminadamente. Muitas vezes não havia artigos para vender –já para não falar em frigoríficos, televisões e automóveis em que
era preciso estar meses à espera. Progressivamente o pronto-a-vestir, com a
abertura de várias fábricas nacionais, invadiu o mercado com artigos de grande
qualidade e foi encostando os tecidos a metro às boxes. Por sua vez, devido ao
poder de compra da população em geral, começou a assistir-se a um gosto mais
refinado por parte dos compradores –lembro-me muito bem dos habitantes de São Mamede,
uma aldeia ali para os lados de Penacova, quando adquiriam algo para vestir
nunca poderia ser igual ao vizinho. “Tinha de estar na moda”, como diziam. Era
um contorcionismo imenso para lhes conseguir vender uma peça de roupa. Tinha de
ser mesmo original. Quando detectavam um fato que já lá havia um igual na
terra, interrogavam o vendedor se queria vesti-los todos iguais, como os
chineses de Mao (Tse-tung).
No princípio da década de 1980,
apesar de uma grande crise, sobretudo inflacionista, as grandes marcas de roupa
já davam cartas para uma população mais endinheirada e acima do comum. Esta
opção pela distinção foi, no fundo, o seguimento, em substituição, do cliente
do vestuário por medida. Mais uma vez, nesta década, se assistia uma bipolaridade
no adquirente de roupa. Embora em menor número, de um lado o abastado que
comprava as grandes marcas caríssimas e do outro em maior expressão os
trabalhadores a angariarem a roupa mais barata –habitualmente cópias das
grandes marcas, mas com outro nome. Sem dados estatísticos, creio que a década
de 1990 teria sido talvez a época onde se assistiu a um equilíbrio maior no
vestir com gosto e qualidade entre as duas classes, o trabalhador e o burguês,
digamos assim. As fábricas nacionais de têxteis, creio, nesta altura, tocaram
também o apogeu comercial.
A partir de 1994, com a adesão de
Portugal à Organização Mundial de Comércio, e com a entrada de artigos
chineses, começou a razia nas fábricas nacionais de ferramentas e outros
artigos utilitários, como, por exemplo, guarda-chuvas –os têxteis ficaram
salvaguardados até 2004. A partir desta data foi o descalabro no encerramento
de fábricas nacionais.
Paulatinamente, e curiosamente,
talvez devido ao cada vez menor poder de compra, os portugueses começaram a vestir
cada vez pior e deixou de haver, acentuadamente, duas classes na escolha de
artigos para vestir. Maioritariamente passámos todos a vestir “made in China”.
E lembrei-me de tudo isto porque,
ontem, fui visitar o Primark, ao Fórum Coimbra, e recentemente aberto. E o que
vi lá? Para já montanhas de pessoas a comprar artigos baratos –vi isto em 1994,
quando abriu em Coimbra a primeira loja de 300, na Rua das Padeiras, e em que
as pessoas faziam fila para entrar. Foi um “remake” que assisti ontem.
Tal como as ferramentas chinesas
de há cerca de vinte anos, vi no Primark camisolas a 3, 5, 10 euros, com malhas
de pouquíssima qualidade. Casacos a 25 euros, muitas calças a 5 euros e algumas
a 10 euros. Muitos sapatos, sobretudo de senhora, onde é saliente uma maior
oferta em geral. Vi então que as pessoas, contrariamente a outros tempos, em
que primavam pelo bom gosto e apostavam na diferença, agora, não se importam de andar todos vestidos de igual,
à Mao Zedung, desde que seja barato. Perante o meu olhar, perdeu-se de vez o
interesse pelo bem vestir –é evidente que poderíamos partir daqui para outras
projecções analíticas massificadas da colectividade, mas o texto já vai longo, no entanto, dá para apreender uma formatação etno-cultural, no trajar. Através do baixo preço, entrámos numa colonização de fardamento de filosofia oriental. Nesta homogeneização, entre outros costumes, estamos cada vez menos diferenciados. Nesta massa humana, a diversidade cultural perde cada vez mais terreno. Estamos cada vez mais iguais ao vizinho. Também
é notório que, talvez pelo pouco dinheiro disponível, a qualidade não interessa
nada. O que importa é andar tapado.
Não deveria terminar esta crónica
com toque pessimista, mas não consigo dar outro. Embora estejamos perante uma “feira
do Norton de Matos” em larga escala e em que, pela sobreprodução mundial, os produtos tenderão em embaratecer cada vez mais, o problema é que, infelizmente intui isso,
esta grande área, desta marca Irlandesa, vai arrumar a Baixa ainda mais
depressa. Aguardemos com a serenidade possível.
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