terça-feira, 26 de outubro de 2010

AUTO-ESTRADAS DE AUTÓMATOS




 Ontem fui a Braga. Entrei em Coimbra pela auto-estrada. Enquanto decorria a viagem ia pensando se iria encontrar alguma Scut. Como habitualmente viajo pouco não vou adquirir o chip. Ao mesmo tempo que o meu carro ia comendo a distância que me separava do destino, perante mais esta novidade, era assaltado por algum sentimento de desassossego e insegurança perante as novas tecnologias que diariamente invadem o meu espaço pessoal. Se não me considero totalmente fechado às inovações, a verdade é que só extraio o mínimo delas. Costumo dizer que nasci no tempo das máquinas a petróleo.
Tenho algumas reservas acerca da sua constante e omnipotente irrupção pela minha existência adentro. Sempre tento resistir enquanto posso. Acabo sempre vencido, mas não convencido. Tenho para mim que esta linha digital absorvente nos há-de acabar por asfixiar. Há-de destruir as nossas vidas, tal como a conhecemos. Lá vou lendo aqui e acolá que não, que é apenas mais uma mudança no mundo. Lá penso eu que, como sempre, sou um alarmista. Estou continuamente a arranjar temas para reflectir e escrever. Acabo por pedir desculpa à minha outra parte mais ajuizada e menos vanguardista de ser, e lá vou andando.
Lembro-me do tempo analógico em que, através do telefone, pedíamos uma informação e falávamos com uma voz esganiçada de mulher. Mentalmente, maldizíamos a sua intolerância para com a nossa ignorância. Imaginávamo-la, numa longa secção corrida de várias pessoas, como uma senhora adiposa de auscultadores nos ouvidos a retirar e a introduzir os cabos telefónicos. Hoje, na era digital, em que a palavra pouco vale, falamos para um gravador. “Se é local, digite a tecla 1…”. Uma irritação que toca o maior dos santificados.
Foi assim, a pensar, que calcorreei as dezenas de quilómetros até ao Porto. Foi então que levei um “cachação", que até fiquei atordoado. Ia distraído. Nem me questionei da razão da existência de grandes filas de trânsito junto às portagens, à saída da A1 e quase entrada na cidade Invicta. Fui avançando devagar até ao guichet onde se encontrava o portageiro. Ou melhor, onde se deveria encontrar, porque estava encerrado. No seu lugar estava uma máquina que me pedia para inserir o pagamento. Levei um murro que até fiquei zonzo. Como nunca tinha “falado” com uma coisa destas –sim falado porque a coisa até debitava palavras-, fiquei à rasca. Agora percebia a razão de todas aquelas filas de pessoas. Agora entendia porque algumas saíam dos veículos e tentavam entabular conversa com a monstruosidade.
Depois de ser tomado por um nervoso miudinho lá consegui acertar com a coisa e a cancela levantou –sim, porque agora até ganhámos uma cancela, assim como se fôssemos uma boiada que só pára na trave vermelha.
Fiquei tão impressionado com todo aquele espalhafato que quando parei numa área de serviço mais à frente, para ir à casa de banho, intuitivamente, levei a mão aos bolsos e procurei uma moeda para introduzir e obter o seu “agreement”. Por acaso tive sorte, afinal aquela porta ainda era do meu tempo. Ainda não fora apanhada pela revolução tecnológica. A seguir dirigi-me à cafetaria, estavam duas raparigas com cara de lata. Pensei logo para mim que eram dois robots que estavam ali para me servir. Ainda pensei que poderia estar enganado…e se fossem humanos? E se eu lhes apertasse as bochechas para verificar? Por acaso estava nos meus dias de ventura, então não é que a rapariga sorriu para mim? Nem sei bem porquê, mas foi bom. Vi logo que ali ainda havia alguma humanidade. Andróide de lata não ri assim. Como sou um grande maluco, contei-lhe da minha dúvida. Saberia ela o que a esperava? Interroguei. E então a mulher, certamente a precisar de desabafar com alguém, despejou o saco: “então não sei, senhor? A nossa profissão está em risco. Um dia destes, ao longo deste salão, vai ver, não tardará muito, só estarão aqui máquinas com pré-pagamento e a vender sandes e sumos! Triste futuro o meu!”, enfatizou.
Segui para Braga. À saída da auto-estrada, na entrada da cidade, estavam três cubículos de pagamento. O do meio estava vazio de gente a trabalhar e com uma máquina a funcionar. Uma longa fila atestava a sua (des)funcionalidade. Nos dois guichets das pontas estavam duas moças novas. Novamente me armei em parvinho e interroguei a cobradora (ainda) humana que estava ao meu lado. “Desculpe, menina, mas porque é que ainda está aqui? Porque é que no seu lugar não está uma máquina?”. A mulher, abrindo os seus olhos doces de espanto, talvez pensando que estava à frente do maior pacóvio calculista que por ali passou, respondeu com um sorriso amarelo. “Bolas, o senhor é mesmo mauzinho!”. Lá lhe contei que, embora tivesse cara de parvo era de nascença, só tinha esta e pouco poderia fazer para a mudar. Apesar disso, expliquei, estava preocupado com o que estava a assistir. Não sei se a convenci, mas lá me foi dizendo que era por pouco tempo. A Brisa estava a negociar com todos os portageiros, no sentido de os substituir por máquinas.
A Brisa é uma grande empresa comparticipada pelo Estado. Estará isto certo? Que os privados procurem o máximo de eficiência, de modo a reduzir os custos, até se entende, mas agora o Estado fazer isto numa grande empresa que dá milhões de lucro? Toda a actividade económica tem um objecto principal, o lucro. Acessoriamente e inerente subjaz uma obrigatória função social. Ou seja, começa na criação de emprego nas famílias, que por sua vez leva ao consumo, e este, em círculo, faz crescer as fábricas e as lojas de comércio. Isto numa economia como nos habituámos a tomar-lhe o pulso noutros tempos, sem globalização. Com as deslocalizações industriais, nesta mundialização, tudo se alterou, perdendo a lógica económica, as famílias ficaram sem os recursos financeiros adjacentes à criação de emprego. Progressivamente, com o encerramento da fábrica nacional fechou mais umas tantas lojas de artigos portugueses que deram lugar a chineses, passivamente fomos todos assistindo ao seu extermínio. Se a este corte no emprego, nos serviços, acrescentarmos a substituição de pessoas por máquinas, facilmente se extrai que estamos a caminhar para qualquer lado, menos para o lado social e de responsabilização directa do crescimento económico.
Hoje, todos falam em crescimento e produtividade. Porém, todos esquecem que vale mais um crescimento sustentado, com produção de emprego e consumo de produtos endógenos, do que um crescimento económico feito a qualquer custo, com importações a esmo, visando apenas o capital financeiro sem pátria, sem uma relação directa no social, nas pessoas, que somos todos e aqui vivemos.
Na produtividade a mesma coisa. Vale mais uma fertilidade laboral, assente no esforço humano (Trabalho), ainda que fique aquém de certos objectivos programados, do que, o que se está assistir, assente unicamente numa eficiência elevada ao óptimo, numa racionalidade fria de sentimentos, onde o que conta é o resultado final traduzido em lucro e feito através de investimento em máquinas (Capital), sem se atender que caminhamos para um desemprego massivo e sem retorno.
Claro que todos somos culpados. Ao alinharmos numa lógica de rapidez e comodidade –lembremo-nos dos milhares de bancários despedidos nas últimas décadas, em troca das máquinas de Multibanco-, estamos a avalizar os tempos presentes. O problema é que, como numa roleta russa, também vai chegar a nossa vez. A invasão tecnológica vai chegar a todo o lado, mesmo até aos julgamentos dos tribunais. Não tardará muito que o juiz, versando unicamente e apenas a eficiência, sem ter o mínimo de preocupação pela justiça, será substituído por um computador.
Contrariamente ao que se pensa, já é a máquina que controla a nossa vida diária e não o contrário. Numa grande maioria, já somos prisioneiros da sua vontade soberana, marionetas ao serviço dos seus desígnios. E quem não for é olhado como analfabeto, infoexcluído, um parolo, um ignorante desprezível que não se quer modernizar.
Talvez valesse a pena pensar nisto…



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