Desde que me levantei –já tardote,
que nunca fui de me atirar ao trabalho pelo lusco-fusco, segui sempre o
aforismo “vale mais quem Deus ajuda do que quem muito madruga”- que senti que
hoje não era um daqueles meus dias de sol –bem sei que esteve a chover e de
tons acinzentados, mas não era por isso. Levantei-me assim um bocado para o “em
baixo”, não sei se me faço entender. Eu vi logo, eu seja ceguinho, quando
espreitei pela janela e não vi o Januário –é o pintassilgo que me costuma
saudar todos os dias na árvore em frente ao meu quarto- adivinhei logo que hoje
não ia ter sorte nenhuma.
Nas calmas –que a vida é curta e
não pode ser levada com correrias-, tomei o pequeno-almoço, lá dei milho às
galinhas –e é claro, levando à letra as directivas comunitárias, falei para
elas, é certo que não me responderam, mas deu para perceber que estavam
felizes. Dei ração aos gatos e ao meu cão –naturalmente que, empregando os meus
conhecimentos de psicanálise animal, intuí que também não estavam mal, quer
dizer, o “Pintas”, o meu cachorro, pareceu-me que estava a precisar de uma
cadela. Estava carente, não sei se me entendem, mas o que é que eu podia fazer?
Nada, claro. Atirei-lhe: “olha pá, aguenta o desejo, contenta-te com a minha
sorte”. Não sei se me teria entendido muito bem, mas pelo abanar do rabo,
pareceu-me que ficava bem. E rumei à Baixa, até à sede do blogue Questões
Nacionais”.
Mal transpus a porta da redacção
vi logo que já tinha perdido “vinte paus”. Não sei o que se passa com vocês,
mas comigo, quanto mais velho estou mais intuitivo me torno. Bastou-me olhar
para a cara do gajo –eu escrevi cara? Nada disso, aquilo era uma tromba maior
que a do elefante que o Rei de Espanha mandou um tiro-liro. “O gajo” é o
director do blogue, o Luís Fernandes –não devem conhecer. Aliás, ninguém o
conhece, mas ainda bem, só ganham com isso, palavra de escuteiro. O tipo, assim
com umas fuças –salvo seja, é claro- que parecia o Gaspar, o ministro das Finanças.
Assim do género que por muito doces que aparentem são sempre amargos, não sei
se estarei a ser claro. Se calhar não, mas também não interessa para o caso.
Dizia eu, umas fuças divididas entre os confins da Amazónia e a casa do senhor
engenheiro Belmiro de Azevedo –entenderam? Mal o tipo -o Luís Fernandes, não
percam o fio à meada- estampou os olhos em mim, juro, até senti um murro no
estômago. Logo a seguir, com aquela voz de falsete, assim de “engraxadelas”, não
sei se estão acompanhar, atirou de supetão: “ó “Olho de Lince” faça o favor de
chegar aqui ao escritório!”. Não sei se vocês estarão a sentir o que eu senti,
mas fiquei logo de pé atrás. Mentalmente disse cá para o meu interior: “estás
lixado, Lince, dali só sai “poda ou canelada”. Não pensem que não tenho razões
para pensar assim. O gajo desde que soube que eu era vidrado na Rosete –vocês não
devem conhecer, é a jornalista cá da casa, que é boa, boa, cinco vezes boa-
nunca mais me gramou.
-Ó “Olho de Lince”, logo à noite
o Mia Couto vai estar no Café Santa Cruz. Vai apresentar o seu último livro –não
me recordo do título, mas também não interessa-, de modo que queria que você
fizesse a cobertura do acontecimento –atirou o gajo, assim de chicote, com
um desprezo cortante nas frases.
-Ó chefe, eu até ia, mas, calculo
que vai lá estar a fina flor da cidade. Acontece que, por falta de pagamento de
honorários –não recebo há mais de um ano-, estou completamente nas lonas e não
tenho roupa nenhuma de jeito –levantei um dos sapatos e mostrei-lhe um grande
buraco na sola, para ver se o animal se condoía.
-Ó “Olho de Lince” faça o favor
de se deixar de merdas. Você vai trabalhar, não vai fazer nenhuma passagem de
modelos…
-Ó Chefe, caramba, parece mal, já
viu a imagem que o blogue vai dar? Eu sou um embaixador cá da casa. Bem sei que
você está mais teso que qualquer comerciante da Baixa e não tem nem uma moeda
para fazer cantar um cego, mas os outros não precisam de saber. É ou não é? –atirei
assim, naquela coisa, como se fosse o ministro Relvas para o Passos.
-(A cavalgadura olhou assim para mim fixamente e eu fiquei a balouçar.
Nem sabia se ia levar um coice ou uma nota de vinte)… Bem, vistas as coisas
dessa forma, se calhar até pode ter razão. Mas você não me estava a ofender,
pois não? Interroga o mastronço, assim meio desconfiado.
-Ó chefe, por amor de Deus! Nem
lhe passe uma coisa dessas pela sua cabeça enfeitada…
-O quê? O que é quer dizer com “enfeitada”?
-Fosca-se, chefe, você está mesmo
para desconversar. Queria dizer que esse gel no cabelo fica-lhe mesmo a matar.
Tem um penteado espectacular…
-Ah, bom! De repente, até pensei…
você anda um bocado a sair-se das cascas, não anda? Tome lá uma vintena e vá
comprar qualquer coisa apresentável. Mas compre aqui na Baixa. Está a ouvir?
Sei lá, vá às Modas Veiga, aqui ao lado e nosso vizinho, ou ao Arménio, da
Sofimoda. Está a perceber?!?
Nem respondi ao asinino. Este
malcriado –e mal gerado, mal empregado grito que o pai mandou quando estava lá
na confecção- irrita-me profundamente. Porra, não há pachorra!
Então, durante o dia, fui comprar
uma “farpela”. Tinha de me apresentar bem, à noite no Santa Cruz, quem sabe não
estivesse por lá a diva do meu encantamento? –É a Helena Freitas, a mais linda
mulher de Coimbra. Desconfio que esta mulher é reincarnada de um modelo de
Miguel Ângelo, o italiano do século XVI, não é o cantor. Quem sabe se eu fosse
bem vestido ela não me convidasse para jantar? –sim, só se fosse ela a pagar,
porque, por aqui, nas tascas em redor, já tenho o livro dos calotes cheiinho.
Nunca se sabe, pensava eu cá com os meus botões, em solilóquio. Pois claro,
porque do Mia Couto não sei nada. Nunca li nenhum livro dele –nem de outros, eu
não leio quase nada. Faço umas citações assim para parecer que sou intelectual,
mas não passo das primeiras 50 páginas, nem vejo um boi à frente. Mas também é
certo que das pessoas que irei encontrar lá no café, mais logo, quem é que leu
um livro do Couto até ao fim? Dizem todos que leram, que é para parecer bem.
Até aposto que a sala do café Santa Cruz vai estar a abarrotar. Por acaso já
nem uma moeda tenho, se tivesse,
apostava dobrado em como vai ser assim. Todo o mundo vai querer aparecer no
lançamento do livro do escritor moçambicano. Mas eu não quero saber nada disso!
Eu só lá vou para tirar umas fotos para o blogue e ver se apanho a minha musa
de inspiração. Isso é que me interessa. O resto, estou a borrifar-me! Eu quero
lá saber do Couto. Até já estou irritado com ele, mesmo sem o conhecer.
Então, por volta das 22h00, lá
rumei ao velho café. Ena pá! Estava repleto até às bordas. Aquilo parecia o “basófias”
nos velhos tempos de cheia invernosa. É evidente que eu ia em missão. Empurrão
para aqui, calcadela num pé acolá, e consegui chegar só a meio da sala. “C’um
caraças”, parecia que tinha rebentado a cadeia! Lá tirei umas fotos mal e
porcamente, porque estavam sempre a empurrar-me e ficaram todas tremidas. Eu
não disse que não ia ter sorte nenhuma? Eu vi logo! Foi então que avistei a
alegria do meu olhar. Sorrateiramente, pancada para aqui, ombro para acolá, e
lá cheguei ao pé da minha Afrodite. Beijei-lhe a mão –que não sei se estão a ver,
mas mesmo um carroceiro tem sempre de se fazer fino para uma senhora. O meu
coração palpitava, “pum pum, pum pum”, que até parecia os canhões de Napoleão,
ali na Serra do Buçaco, em 1809, não se devem lembrar. Acho que não. O barulho
da minha máquina de fluídos amorosos era tal que até estava com medo de abafar
as palavras do escritor.
Foi então que ela me bombardeou nas bentas: “vou
jantar com o Mia Couto!
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