quinta-feira, 12 de abril de 2012

LEIA O DESPERTAR...




LEIA AQUI O DESPERTAR DESTA SEMANA


Para além  da coluna "Memória: "Monsieur Velhustro", deixo também os textos "Reflexão: A crise do 3º Estado", " Mercado: Valha-nos Santo Onofre" e "Caça ao Processo Inquisitório".





MEMÓRIA: “MONSIEUR VELHUSTRO”

 Quando se pensa em antiguidades e velharias em Coimbra é impossível não sermos invadidos pela sua lembrança. Carlos Manuel Dias, com o seu inesquecível “Velhustro”, é o decano, o mais antigo comerciante em atividade na cidade. Nasceu em 9 de Abril de 1924, em Lisboa. Comemorou há dias 88 anos de existência.

Ainda era funcionário de Produção do Serviço Externo da antiga Emissora Nacional, do serviço de fiscalização de rádio e televisão, quando, nos primeiros dias de junho de 1971, abriu a sua loja no Largo do Romal, não exatamente no local onde hoje se encontra, mas a dez metros mais à frente, num prédio que foi demolido pela Câmara Municipal de Coimbra para alargar o largo mais típico da Baixa -esta praceta, durante todo o século XX, foi famosa pelas suas fogueiras mandadas e arraiais populares. 


Nessa altura, poucas pessoas se dedicavam a este ramo –aliás, através dos tempos, sempre se associou o vendedor de velharias, depreciativamente, a “ferro-velho”. Poucos se apercebem que dentro daquela imagem humana, de “ecce homo”, igual a tantas outras, está um ser carregado de extrema sensibilidade. Como arqueólogo recuperador de um passado assente em sinais marcados, ele vê à distância o que comum não logra a um palmo. Para ele, adquirir uma peça é entrar na sua memória, é fazer parte e reviver a sua história. É dar-lhe vida, retirando-a do fundo de um baú insalubre, chamando-a para a luz majestática da arte. O negociante de velharias é um criador, um visionário que só ele acredita no seu mundo encantado. É um Ser contraditório em potência. É um lobo solitário no meio da multidão. Afirma-se racional e é um emotivo de coração lacrimejante. Diz-se não crer e acredita no que não vê. Aparenta ser desapiedado e é muito sensível; ao mínimo toque chora. É muito possível que seja esta melancolia, que lhe inunda as catacumbas da alma, a causadora de uma sensibilidade acima da média e faz dele um personagem algo mediúnico, transcendental e metafísico, onde a presciência se distribui em fluídos num espírito inquieto. Os objetos com que se relaciona são a extensão de si mesmo, a materialização dos sonhos, a projeção dos afetos.


Vamos ouvir Carlos Dias. “Quando comecei, havia ali na Rua Eduardo Coelho, em frente ao desaparecido armeiro Carlos de Almeida, o Bomberg e o Plácido Vicente, na Rua da Sofia, junto ao Diário de Coimbra, e, que me lembre, mais ninguém queria saber deste negócio. Sempre gostei disto por ser diferente. Sabe porque é que abri a loja? Vai-se rir, mas foi por dois motivos: um, para que o meu filho estivesse sempre ocupado e não se metesse na droga, outro, para que eu, mesmo velhinho, pudesse também estar sempre entretido. Nunca me imaginei a acabar os meus dias enterrado num sofá a ver televisão, ou internado num lar.


Embora tenha quatro filhos, três são raparigas. O meu filho, talvez por ser rapaz, é que me preocupava. Ele começou muito novo a trabalhar comigo cá na loja. Depois o prédio foi demolido e a câmara queria mandar-me para a Rua da Moeda. Eu bati o pé e disse que não ia. Foi então que me arranjaram um espaço no Pátio do Castilho, ali junto ao Arco de Almedina. Estive lá muito tempo. Há cerca de uns 15 anos voltei novamente para o Romal, onde me encontro agora e, creio, aqui acabarei os meus dias.”



Conceituar Carlos Dias não é fácil. Se tentarmos adivinhar a sua idiossincrasia, a sua maneira de ser, através da imagem, corremos o risco de falhar rotundamente. Vamos olhá-lo de frente. É um homem baixo, pouco mais de um metro e sessenta. Aparentemente tem um aspeto frágil –ilusão de óptica. Na sua figura, com a cabeça semicoberta com boné à Jean Moulin –o resistente francês na Segunda Guerra Mundial- e onde se escondem magotes de cabelos prateados revoltos teimando em romper o anonimato, ressaltam dois olhos pequeninos, perspicazes e capazes de ler o ânimo a qualquer um. Mas o que mais impressiona é o fundo negro naquele olhar de tristeza profunda e que nos reporta para um quadro do “menino a chorar”, do espanhol Bruno Amadio. 

Curiosamente, Manuel Bontempo, jornalista emérito de “O Despertar”, em 23 de Janeiro de 1991, escrevia assim: “(…) nesta nossa cidade Monsieur Velhustro tem a expressão da procura e da oferta numa quase idealização artística de pendor filosófico. (…) Em Monsieur Velhustro há uma deontologia quase obsessiva e não a concepção apressada do mero formalismo e preocupar-se com a alma dos objetos, como seres vivos, na mundidade e na temporalidade, como fosse poeta, filósofo ou, simplesmente, artista.”
Dias é um universalista. “No mundo inteiro, todos deveríamos defender os mesmos valores”, confidencia-me. “Deveríamos todos falar a mesma linguagem. Foi uma pena o Esperanto não ter resultado. Já que não foi assim, aqui ou em qualquer outro lugar, nego-me terminantemente a falar outra língua senão a de Camões. Bem sei que, para muitos, tenho um feitio esquisito, mas cada um é como é. Sou direto e objetivo. Não sou pessoa de meias palavras. Já mais do que uma vez fui descalço na procissão da Rainha Santa. Sabe porquê? Para fazer ver aos meus amigos que desta vida não levamos nada. Para quê a ostentação?


MERCADO: VALHA-NOS SANTO ONOFRE


 Na última sexta-feira, para além de ser o melhor dia de negócio do mercado foi também feriado: sexta-feira santa. Acontece que, inexplicavelmente, o parque subterrâneo de estacionamento esteve encerrado. Se é correto afirmar que esta situação já vem de longe, não é menos certo dizer que, para além de ser incompreensível, desta vez provocou alguma revolta a quem pretendia fazer compras no Mercado Municipal D. Pedro V e não tinha lugar para estacionar a sua viatura. Uma destas pessoas, que se me dirigiu, disse mesmo que, pela impossibilidade, acabou por ir ao “Pingo Doce”.
Já sabemos que neste momento, por resignação do vereador do pelouro, João Orvalho, estamos perante um “vacatio pilouro”, ou seja, um vazio de competência. No entanto, a vida continua e, por conseguinte, será de supor que a breve trecho a responsabilidade política deste espaço passará, provavelmente, para José Belo. Ora, manda o bom senso que o que se passou em repetição não pode continuar. Tal como afirmou Paulo Diniz, um interessado operador desta praça popular, de que já falámos aqui, e que, como general a reunir tropas, tenta convencer os colegas para recuperar a importância e a glória de outros tempos, “Não se percebe como é que a Câmara Municipal de Coimbra gasta milhões de euros para manter o mercado a funcionar e, num dia como hoje, tão importante para quem aqui trabalha, não corresponda às expectativas criadas”. Além de mais, saliente-se, na véspera, Diniz contactou os SMTUC a alertar para este previsível facto anómalo e heterodoxo. A resposta que obteve, segundo afirmou, foi de que “não era possível, porque o contrato de prestação de serviços ratificado com uma empresa de segurança não prevê trabalhar em domingos e feriados”.



CAÇA AO PROCESSO INQUISITÓRIO



 Soube agora que há cerca de duas semanas dois agentes da PSP acompanhados de dois responsáveis da SPA, Sociedade Portuguesa de Autores, andaram a percorrer algumas lojas da Baixa. Indagavam se quem passava música detinha licença para o efeito –pessoalmente, creio que estamos perante mais uma lei absurda, sobretudo se adquirida legalmente em cd’s, e que acaba por ser contraproducente. Isto é, visando defender os interesses dos músicos, pelo radicalismo do legislador, acaba por prejudicar estes criadores, inevitavelmente. Mas se isto é a minha opinião –e quem me julgo eu para a emitir?-, a aberração, ou pelo menos o incompreensível, não fica por aqui. Segundo Carlos Santos, funcionário da sapataria Valise, na Rua Visconde da Luz, “entraram na minha loja e interrogaram se tínhamos licença para passar música. Invoquei que era o rádio que estava a emitir. Os membros da SPA argumentaram ser necessária uma licença. Desliguei imediatamente o aparelho e nunca mais o ligámos. Será que este pessoal saberá mesmo o que anda a fazer? É que, dá-me impressão, parecem querer mesmo, intencionalmente, transformar os estabelecimentos comerciais em mausoléus de silêncio numa Baixa, que, aos poucos, se está a transformar num cemitério de vivos. Ou então, em busca de um processo inquisitório, querem que eu e os meus colegas acabemos todos no desemprego.”
Segundo uma fonte ligada à SPA e que pediu o anonimato, “é verdade, sim. O passar música através de rádio obriga a ter autorização emitida pelos nossos serviços. O custo da licença é proporcional à área do estabelecimento. Por exemplo, uma loja com 50 metros quadrados tem um custo de 4 euros e mais IVA, por mês. Está plasmado no Código da SPA.”
Mas o desplante ainda não acabou: praticamente todos os consumidores de energia elétrica, incluindo um poço de rega, um ascensor, e portanto todos os estabelecimentos, têm na fatura da eletricidade uma denominada taxa “Contribuição audio-visual”. Quem explica esta dupla tributação?

REFLEXÃO: A CRISE DO 3º ESTADO


 Lendo os dois textos, “Mercado: valha-nos Santo Onofre” e “Caça ao Processo Inquisitório”, poderemos facilmente inferir que os pequenos comerciantes estão entregues à sua sorte. Por um lado, estão a ser abandonados por quem os deveria apoiar, por outro, como burros de carga, cadavéricos e escanzelados, estão a ser sobrecarregados com taxas, impostos e outras alcavalas impossíveis de aguentar neste tempo de escassa esperança. As consequências estão ao alcance de um olhar: falências em grande escala no comércio da Baixa. Quem tem responsabilidade, porque a sua sobrevivência está assegurada, assobia para o lado e faz de conta que nada se passa.
Convém lembrar que a Revolução Francesa, em 1789, ocorreu exatamente pela revolta do terceiro Estado, constituído por pequenos comerciantes, artesãos, camponeses, burgueses, e contra o despotismo da Nobreza e do Clero. Era aquele último grupo da pirâmide social que pagava impostos para suportar os luxos e as extravagâncias dos dois primeiros. Mesmo por cá basta lembrar que o Liberalismo, há quase dois séculos, em 1820, esteve na origem da queda da Monarquia. Pela sua injusta repartição social, com sangue no Paço, a realeza teve epílogo em 1910. Serão necessárias mais lições de história para ver que caminhamos sobre um barril de pólvora social? É difícil de adivinhar que basta um pequeno chispar para haver uma explosão?





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