Para além da coluna "Memória: "A Perfumaria Pétala (1)", deixo também os textos "Reflexão: O "basta" dos Capitães " e "O Carteiro do nosso largo".
MEMÓRIA: A PERFUMARIA PÉTALA (1)
Em 8 de Dezembro de 1948, quando,
no Campo Grande, os sócios do Sporting Clube de Portugal gritavam com ardor e
vibravam com a vitória do clube lisboeta, de quatro golos a um, sobre o AIK, da
Suécia, na pequena aldeia de Torre de Bera, dentro de uma humilde casinha, com
telhas à vista e onde o frio e as beiras entravam sem cerimónia e com
liberdade, Maria Nazaré gritava de dor pelo parto daquele que, mais tarde, em
batismo, se viria a chamar Armindo Gaspar.
Neste lugarejo, onde a paz
bucólica só era quebrada pelo chilrear dos passarinhos e pelo rebate do sino da
freguesia, dormitório de Coimbra, quase todos os seus habitantes se dedicavam
ao amanho da terra. Era daqui, do interior deste chão sagrado, que provinha a
alimentação da prole. Apesar de se atravessar tempos de carestia, naquele
povoado ninguém passava fome. Como guarda-mor, em cada casinha pobre, uma
chaminé desafiava o vento, expulsando farrapos de miséria em fumo de atalaia,
como guerreiro que não se rendia perante a lazeira. Naquele fio de esperança
estava a vida daquela comunidade. Era a alegria de um forno a aquecer que em
breve aceitaria no seu seio a massa levedada na grande gamela de madeira e,
como milagre divino, a transformaria em muitas broas estaladiças e que,
conjuntamente, com uma frugal sopa de couves e feijão, seriam a “tranca da
barriga” de toda a família. Acontecia assim com os pais do Gaspar.
Era assim no
interior esconso e modesto de todo o país. Nesta altura, Portugal tinha uma
economia subdesenvolvida. O PIB, Produto Interno Bruto, correspondia a 40 por
cento da média europeia. Metade da população nacional dependia da agricultura.
Com um índice de analfabetismo de cerca de 80 por cento, e superior ao que
havia sido registado um século antes nos países do norte e centro da Europa,
era mais que natural que naquela casa pobre, onde o Armindo viu a luz pela
primeira vez, não se soubesse ler, embora Nazaré, a mãe, conseguisse juntar
umas letras e, com dificuldade, fazer um caldo deslavado em frases desconexas
de sentido. Aprendera em tempos quando trabalhara em casa do Visconde do Ameal,
na Rua da Sofia, e cujo palácio viria a ser o Tribunal de Coimbra.
Enquanto frequentou a então
escola primária, naturalmente, como todos os miúdos pobres, diariamente, tinha
de ajudar os progenitores na lida do campo. Para além de se acreditar que a
disciplina do trabalho era formativa do carácter, havia também o aforismo
popular de que “o labor do menino é pouco, mas quem não o aproveita é louco”.
Mas, se, por um lado, não lhe restava outra escolha, por outro, o sonho
martelado todos os dias era quando poderia abandonar aquele costume de muito
esforço a troco de lentilhas.
Assim que finalizou o ensino básico –como hoje é
conhecido-, e logo que pode, o Gaspar rumou à grande cidade, caldeirão de todos
os sonhos realizáveis, embrulhados em muitos mitos. Por volta de 1960, ainda de
calções remendados, começou a trabalhar na taberna do Rafael da Silva Costa, no
Largo da Fornalhinha. Porém, a primeira surpresa, de muitas outras, o esperava,
as refeições, para além de serem minguadas, tinham sempre a mesma textura: açorda
de pão ao almoço e ao jantar. Esteve lá somente um mês. A seguir foi trabalhar
para uma mercearia em Santa Clara. A sua ocupação era percorrer a pé todo o
planalto da margem esquerda procurando as encomendas dos clientes. A seguir era
a entrega com um cabaz às costas. Isto juntando os diários 12 quilómetros, a
penates, de Torre de Bera para Coimbra. Esteve nesta mercearia até ir para a
tropa. Quando regressou, porque aspirava um futuro melhor, foi trabalhar para
um armazém de acessórios de farmácia, a ACEFARMA, em Monte Formoso. Aqui se
manteve durante 7 anos. Mas os planos que desenhava nas suas muitas noites de
insónia eram outros. Como migrante em busca da terra prometida, queria
trabalhar por sua conta.
E como quem procura sempre alcança, juntamente com um
sócio, em 1979, na Rua Ferreira Borges, número 103, abriu o seu primeiro
negócio, a sua primeira perfumaria. A marearem em oceanos de suor, em 1985
tinham 4 lojas em vários pontos da cidade e onde davam emprego a 8 pessoas.
Mais ou menos em 1990, quando o comércio de rua atingiu o pico máximo da
eficiência, desfizeram a sociedade e Armindo Gaspar, juntamente com a sua
esposa, Graça, chamou a si a condução de duas perfumarias, uma no Centro
Comercial Avenida e outra a Pétala, na Rua Visconde da Luz, onde hoje se
mantém. O tempo foi correndo, o Armindo, a pulso de lutador, foi conquistando
tudo o que tinha idealizado, mas o seu maior orgulho é ter dado às suas filhas
um instrumento que não lhe fora proporcionado: um curso universitário.
O Armindo não esqueceu as suas
origens humildes e, por isso mesmo, há 15 anos que, com prejuízo para o seu
negócio, cavalga uma pileca escanzelada: o associativismo. Tentando ajudar quem
precisa, como Quixote armado de esperança, depois de ter ocupado vários cargos
na direção da ACIC, Associação Comercial e Industrial de Coimbra, hoje, e já
desde 2006, é o presidente da APBC, Agência para a Promoção da Baixa de
Coimbra.
CONTINUA NA PRÓXIMA EDIÇÃO.
REFLEXÃO: O “BASTA” DOS CAPITÃES
Nos últimos anos, para os mais
velhos, a comemoração do 25 de Abril tornou-se em mais uma data corriqueira que
apenas serve para descansar. Provavelmente, para os mais novos não dirá
absolutamente nada. Este ano, neste feriado que passou, houve dois
acontecimentos que marcaram para sempre esta efeméride. Um deles foi o
desaparecimento precoce de Miguel Portas. Não o conheci pessoalmente. Apenas
estive numa palestra sobre economia, em Coimbra, em que ele esteve presente. Gostei
dele. Pareceu-me um doce de pessoa e com uma humanidade fora de comum. Não
tenho dúvida em afirmar que Portugal perdeu um grande lutador pela causa da justiça.
O segundo acontecimento foi o “grito de Ipiranga”, o “basta” dos ex-capitães de
Abril. Não tenho dúvida de que depois deste berro pacífico, mas com muita dor
–quem viu os “Prós e Contras”, na RTP1, certamente sentiu no coração o
sofrimento na alma do Coronel Sousa e Castro. Foi importante este bater o pé ao
atual “status quo”, ao situacionismo? No meu entender foi. E muito! Por se ser
contrário aos seus valores ideológicos, tal como Miguel Portas, goste-se ou não
deles, são figuras marcantes da nossa história. Claro que, relembro, é preciso
aplicar este princípio a todos os que passam pela política.
O CARTEIRO DO NOSSO LARGO
“Chegou o carteiro! Das nove para
as dez! A vizinha do lado, chegando à janela, logo gritou: “traz carta para
mim?”. Para uns são alegrias, para outros tristezas são. O carteiro não tem
culpa é a sua profissão”. Era assim que o conjunto típico António Mafra
designava o popular correio do nosso imaginário em finais de 1960.
Recentemente chegado à nossa rua,
o nosso carteiro é o senhor António Duarte. Está nos Correios há mais de uma
vintena de anos, e gosta muito do que faz, diz-me com aquela ênfase que se
aplica quando falamos de algo que se entrelaça na alma. Apesar de já não trazer
nem uma carta de amor, só contas para pagar, transportando no rosto um sorriso
e uma imensa vontade de servir, continua a ser estimado por todos.
Já há uns dias que ando a pensar
em escrever um texto sobre os carteiros da nossa zona. Certamente, alguma mente
iluminada dos CTT–Correios de Portugal tomado de uma obsessão pela
descentralização de serviços, no último ano, deu em substituir semanalmente, os
distribuidores de correspondência. Resultado, nos primeiros dias é vê-los numa
aflição, perdidos, para encontrar certos números de porta que não estão lá, ou
a menina Lurdinhas, que mora no largo, mas a missiva não traz número de porta.
Foi por isto mesmo que, esta semana, ao ver o senhor Duarte à procura de uma
morada, me lembrei de escrever este pequeno texto. Quem sabe alguém dos CTT não
leia e reflita que este atual serviço prestado nem serve os utentes nem os
carteiros, que se veem “gregos”, em determinadas situações, para conseguirem
levar a bom porto o desempenho da sua missão.
Indo um pouco mais longe,
poderemos interrogar: por que acontece esta constante mudança de técnicos
semanalmente se, aparentemente, não aumenta a eficácia nem traz mais-valias às
partes interessadas? Será que os serviços dos Correios procuram cada vez mais
funcionários-turbo? Ou a medida procura torná-los polivalentes e capazes de
reconhecerem um qualquer trajeto? Mas, humanamente, numa semana, isto é
possível? Poderemos especular que é para não ganharem certos vícios adquiridos,
mas esta rotatividade irá evitá-los?
Não é fazer futurologia, mas
adivinha-se que estes digníssimos e respeitáveis profissionais estão a prazo
–será mais uma profissão que desaparece perante este progressismo avassalador.
A médio-prazo, com prejuízo de todos, acabarão. Este serviço passará a ser
feito por empresas de distribuição, que, aliás, na entrega de encomendas já
está a ser assim.
Portanto, para a história do
nosso tempo, fiquemos com esta fantástica imagem do carteiro, António Duarte,
no Largo da Freiria, em Coimbra.
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