quinta-feira, 4 de março de 2010

UMA MULHER MISTERIOSA


 Quando ela entrou, em passo marcado, ondulante e provocador, eu estava sentado no pequeno café da minha rua. Reparei que todos os meus vizinhos, sentados nas mesas próximas, levantaram os olhos como se aquele espaço de tertúlia fosse inundado por um raio de luz. O senhor Jorge e a funcionária, quase em coro, saudaram: “bom dia dona Guilhermina!”.
 Aquele matraquear melódico, de pose libidinosa, encaminhou-se para a mesa ao meu lado, aliás, a única vaga no momento. Antes de ela se sentar, eu já tinha sido invadido pelo seu inebriante perfume caro. Como raramente uso algum, não sou muito conhecedor. As minhas narinas apenas estão preparadas para saber distinguir a boa da má qualidade. E ali, naquele odor intenso a rosas bravas, facilmente poderia constatar que era uma marca de um grande costureiro francês ou de uma actriz de cinema. Naquele corpo bem torneado de “mulher de quarenta”, tudo estava a condizer. Saia justa, ligeiramente a tocar o joelho; uma meia rendilhada da mesma cor da saia castanha cobria uma perna linda de boneca de porcelana; no tronco, uma blusa branca, com três botões desapertados, a deixar antever um colo de perdição e de fruto proibido; a conferir a toilette e a dar um toque de classe, um casaco, a três quartos, em pele de coelho, a misturar um ar exótico de pecadilho.
Quando ela se sentou, como se a saia reclamasse do esforço e subisse a meio da coxa, inevitavelmente, os meus olhos plantaram-se lá, naquela carne cobiçosa, à procura do vale sagrado, mas apenas vislumbrei um cinto de ligas. Foi então que ela lançou os seus olhos verdes na direcção dos meus e, por momentos, senti nas maçãs do meu rosto um intenso rubor como menino de coro apanhado em falta. Mas, ainda que por fugazes segundos, deu para sentir haver ali uma estranha simbiose. Confesso que fiquei excitado. É interessante como funciona o cérebro masculino: de uma imagem simples, ainda que erótica, a mente de um homem fica povoada de desejo.
Da sua boca saiu um “bom dia”, meloso, parecido com o ronronar de um gato persa. Nós conhecíamo-nos, ainda que vagamente. Há pouco tempo, ao passar por mim, na Rua do Paço do Conde, sem que eu estivesse minimamente à espera, interpelou-me e atirou de supetão: “muito obrigado por aquilo que o senhor fez àquela pobre rapariga da Rua das Rãs. Que Deus o ajude! Talvez o senhor fique surpreendido, mas, um dia, vou contar-lhe uma história e vai entender”.
Para se perceber melhor, certamente, noutra vida eu teria sido jornalista. Pelo menos é assim que entendo esta minha apetência por escrever e por tudo o que é notícia aqui na zona onde trabalho. Como cão pisteiro, ando sempre de olhos e nariz no ar a farejar uma “cacha” para colocar no blogue ou escrever no jornal diário da cidade. Há tempos, na Rua das Rãs, estava a fotografar um prédio em ruínas. Sentados num parapeito, estava uma mulher com um olho negro, mas eu mal dei conta desse facto. Enquanto fotografava, comecei a ouvir a conversa entre os dois. Dizia ela: “estou toda pisadinha –ao mesmo tempo que levantava a saia e mostrava uma coxa quase toda negra. Ele roubou-me, violou-me, bateu-me com um pau. Fugi nua. Quem me valeu foi um taxista. Ficou lá tudo no carro do estupor: o meu telemóvel, o dinheiro que tinha feito e até os documentos”.
Pedi-lhe desculpa por ter ouvido. O que apreendi era muito grave. Deveria ir à polícia denunciar o caso, roguei-lhe. “Sou prostituta, não tenho documentos, o senhor acha que alguém vai ligar alguma coisa? Não sei…se calhar não vou…desculpe!” –disse ela. E se eu for, não se importa? Interroguei. Posso fazê-lo porque o crime é público, expliquei. “O senhor faz isso por mim?”. E fiz! –era esta narrativa que a dona Guilhermina se referia. Mas que história misteriosa encerraria esta mulher? O que teria ela para me contar?
Quando ela se sentou na mesa ao meu lado, não sei bem se estava mais corroído em meter simplesmente conversa ou em saber detalhes da história oculta. Quase aposto que seriam as duas. Como o primeiro motivo não era justificável, atirei: a dona Guilhermina, disse-me, há tempos, que tinha algo para me contar. Podemos falar disso? A senhora sabe que gosto de escrever e, sobretudo, sou bom ouvinte. Aqueles olhos verdes, simbolizando o paraíso, abriram-se de espanto e, naquela interrogação admirativa, pareceram ganhar vida em forma de luz: “o senhor não se esqueceu…quem diria!?”. A vida ensinou-me a conhecer as pessoas psicologicamente. Eu sabia que aquela expressão queria dizer apenas: ”você ouviu com atenção o que eu lhe transmiti. Logo, em silogismo, considera-me pessoa, muito para além da minha beleza física entorpecente!”, pensei com os meus botões.
“Olhe, estou em Coimbra há poucos meses. Vivo num daqueles edifícios novos, ali no largo, está a ver? Comprei lá um apartamento novo. Quem olha para mim, jamais dirá o que passei na vida, o que sofri. As pessoas tomam sempre um livro pela capa. Ninguém diria que eu fui prostituta –puta, falando português corrente. "Trabalhava" na zona do Intendente, em Lisboa. Não me envergonho do que fazia –cada um de nós desempenha unicamente o que lhe está destinado. Durante muitos anos, tive um velhinho como cliente. Deveria ter próximo de oitenta anos de idade. Coitado, não fazia nada. Vinha ter comigo, semanalmente, apenas para ser escutado. Dizia que não tinha ninguém com quem conversar. Eu olhava para aquela imagem…e não tinha palavras! Era uma espécie de serviço social que estava a prestar. Durante mais de dois anos foi assim. Eu nunca lhe perguntava nada. Apenas ouvia ou respondia às suas interrogações. Nunca lhe perguntei o que ia além do nome.
Há cerca de oito meses, em vez da sua costumada presença, que para mim já se tornara querida, recebi a visita de um notário. O meu cliente, o meu protegido especial, morrera e deixara-me toda a sua fortuna.”

*TEXTO ESCRITO PARA A FÁBRICA DE HISTÓRIAS, COM O MOTE "PALAVRAS PARA UMA IMAGEM"
Link: http://fabricadehistorias.blogs.sapo.pt/42896.html

2 comentários:

Ana "Strobe" Mendes disse...

Bom dia, desde já um muito obrigado pelo seu comentário.
Em seguida, devo confessar-lhe que fiquei um tanto ou quanto "apaixonada" pelas suas palavras, é lindíssimo o modo como consegue verbalizar cenários observáveis, o modo como expõe textualmete situações.
De facto escreve muito bem. Passarei a ser observadora atenta de novos textos seus.
Um abraço.

LUIS FERNANDES disse...

Obrigada, Ana. É muito querida. É sempre bom receber elogios...e então eu, que já estou mais para lá do que para cá, fico nas nuvens.
Abraço.