sábado, 20 de março de 2010

BRINCAR COM A MENDICIDADE EM JEITO DE ALERTAR






  Ao ler o comentário do Marco não posso resistir a contar esta história. É a primeira vez que a trago a público aqui. E porquê, sendo eu um contador de histórias? –passando a expressão. Olhe, sei lá… provavelmente porque não me orgulho muito dela. Foi uma maluquice que fiz, entre outras ao longo da vida.
Mas vamos lá, já que estou aqui, vou contá-la. Em 2003, a Baixa estava superpovoada de mendigos –nessa altura ainda havia muita gente a passar nas vielas estreitas. Aqui na Rua Eduardo Coelho, desde logo de manhã e até à noite, estávamos continuamente a levar com as lamúrias dos pedintes: “uma moeda, por amor de Deus, senhor!”. Os romenos a pedir eram às dezenas. Havia uma mulher que, para além de utilizar uma criança, abria completamente as pernas até se lhe ver as cuecas, porque na rechonchuda coxa tinha uma grande cicatriz.
Então, o meu amigo Quirino, um velho comerciante dono de uma sapataria, que gosto muito, um dia chegou ao pé de mim e disse: “ó Luís, temos de fazer alguma coisa. Isto não pode continuar”, disse, apontando o quadro da cigana romena. “Eu estou sempre a chamar a PSP, mas eles vêm, mas não fazem nada!”. E o que é que se pode fazer? Interroguei. “Não sei, qualquer coisa que desse nas vistas”, respondeu o meu amigo. Está bem! Anui. Deixe-me pensar que amanhã lhe direi qualquer coisa. Fui para casa, dormi sobre o assunto, e no dia seguinte tinha uma solução. Iríamos colocar junto aos pedintes um boneco vestido andrajosamente, em forma de manequim, com um cartaz e uma inscrição: NÃO SE DEIXE LEVAR PELA APARÊNCIA –NÃO INCENTIVE A MENDICIDADE –NÃO CONTRIBUA. E assim fizemos. Passado um dia lá estava o boneco junto aos pedintes (veja a foto).
Se reparar, na base está um pequeno cesto. Penso que o coloquei para melhor identificar o quadro analogicamente. Então começou a acontecer uma coisa engraçadíssima: sempre que ia recolher o manequim, à noite, havia moedas dentro do pequeno cesto de verga. Ou seja, apesar do cartaz, quem passava, não lendo a mensagem, colocava lá moedas.
Em riso com o meu amigo Quirino comentávamos que afinal tinha-nos saído o “tiro pela culatra”, uma vez que as pessoas continuavam a dar esmolas.
Então, este procedimento das pessoas começou a remoer-me. Porque agiriam assim? Como sou um bocado provocador –comecei a pensar-, e se eu fosse mais longe? E se eu esticasse a corda, para ver até onde ia o esmolar dos transeuntes?
Como sou amigo do Paulo Marques, hoje Repórter Coordenador do Diário as Beiras –na altura chefe de redacção-, telefonei-lhe e contei-lhe o que se estava a passar e que gostava de explorar esta situação. Tinha uma ideia. Pedi-lhe se poderíamos falar pessoalmente sobre o assunto.
No dia 27 de Agosto de 2003, durante a tarde, das 15 às 19 horas. Na Rua Eduardo Coelho, ao lado da tal romena e paralelo ao tal boneco que pedia para não contribuir, esteve um pedinte muito especial. Ou melhor, um falso cego…que era eu. Apesar das vicissitudes –tendo em conta o boneco ao lado-, naquelas quatro horas “ganhei” 30 euros –que foram entregues na Casa dos Pobres de Coimbra.
Apesar da ideia subjacente ser chamar a atenção pública para o acto impensado de dar, não sei muito bem se o consegui. O que sei é que fui muito criticado por colegas comerciantes. Alguns deles bem claros no presságio: “estás a fazer pouco de quem precisa. Oxalá não caias na mesma situação!”.
Talvez por isso ou não, passados sete anos, tenho alguma dúvida se teria feito bem em caricaturar os mendigos. Há coisas que, apesar de nos assistir a razão na altura, por vezes, as palavras proferidas “a posteriori” por outros vêm a criar-nos a interrogação: será que fiz bem?

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