sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

A TERRA PROMETIDA DE ANASTASYA





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  É quinta-feira, dia 4 de Fevereiro de 2010, passam poucos minutos das 19 horas em Lisboa. Chamo-me Anastasya. Estou sentada no avião com o meu menino. Vocês não conhecem, mas o meu tesouro é lindo. Tem três anos, cabelos louros, olhos azuis. Parece um anjo. Foi ele, o meu “bijout”, que me manteve nesta vida e ajudou a ultrapassar os obstáculos, que não desejo a ninguém, e a quase esquecer tudo o que passei. Dentro de momentos irei ouvir o cumprimento do comandante do voo. Vou regressar à Bielorrússia, para junto da minha família.
Abraço o meu menino e encosto a cabeça nas costas da cadeira do avião. Fecho os olhos, e começo a recordar como tudo começou.


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  Estamos em 2003, é verão no meu país-natal do centro-leste da Europa. Tenho vinte e três anos, um corpo de modelo, uma carinha que promete, uns olhos azuis profundos, de um qualquer mar das Caraíbas, e uma cabeça cheia de sonhos, como é natural nesta idade, seja lá em que parte do mundo for.
Trabalho na LG Samsung. Sou supervisora técnica de material informático. Ganho em rublos o equivalente a cerca de 150 euros por mês. Na minha família, de classe média, são todos muito meus amigos; os meus pais, o meu irmão, não sabem o que fazer para me ajudarem a ser feliz. Mas eu nunca saí daqui, gostava de conhecer o mundo. Sou culta, estudei, aliás, no meu país, herança da hegemonia comunista, praticamente não existe analfabetismo. Gostava de ganhar mais dinheiro. Tenho planos para o futuro. É normal, não é?
É então que, por esta altura, um nosso conhecido da família, de laços de amizade próximos, o Ivan, me diz: “queres ir trabalhar para Portugal? Ganha-se lá muito bom dinheiro. A trabalhar na hotelaria, em cafés, garanto-te um ordenado mensal de 800 euros. Podes facilmente enviar para os teus pais 500 euros por mês. Vou lá passar um ano. Se quiseres, vais no meu carro, ajudas na despesa da viagem, e dentro de um ano regressamos à Bielorrússia”. No princípio nem liguei, mas aquelas promessas ficaram a remoer-me na cabeça. Passados dias falei com os meus pais e o meu irmão. Tentaram demover-me, mostrando-me os riscos que poderia correr. Ficaram preocupados. Mas eu estava decidida a ir conhecer Portugal, o tal eldorado que o nosso amigo falava. Aos poucos, os meus familiares foram aceitando, até porque tinham alguma confiança no rapaz.

                                       
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  Depois de atravessarmos a Europa Central de carro, eu, o tal amigo condutor, o Ivan, e outro amigo deste, chegamos a Coimbra. Foi no dia 10 de Dezembro de 2003.
Antes de partir da Bielorrússia, a minha mãe deu-me o equivalente a 500 euros para pagar a viagem e para os primeiros gastos com a alimentação.
Fomos os três para uma casa arrendada por 230 euros por mês. Logo no momento da chegada, o Ivan, o meu desafiador, disse logo que o preço da viagem, como tínhamos parado em França, era de 700 euros. Como eu só tinha 500, fiquei-lhe a dever 200 euros, com a promessa de lhos pagar assim que pudesse.
No dia seguinte ele levou-me a um café nas redondezas da cidade -deveria ter estranhado ele conhecer alguém aqui tão longe da minha terra, mas, como estava tão embevecida, nem pensei no assunto.
No dia seguinte estava a trabalhar. Era um café simples, de aldeia, assim daqueles em que havia muitos homens e poucas mulheres. Era uma clientela de café e bagaço. Ganhava, nesse ano de 2003, 385 euros. Era, nessa altura, o correspondente ao ordenado mínimo. Fazia tudo, fartava-me de trabalhar, dez, onze horas por dia, conforme calhava. Mas eu não me importava, precisava desesperadamente daquele dinheiro.


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  Com o passar do tempo, comecei a sentir que o dono do café em cada dia que passava me assediava mais. Achava que eu era mulher para todo o serviço.
Eu fui repudiando os seus arremessos e tentativas de me possuir, até que se tornou impossível continuar. Passado pouco tempo estava sem trabalho…e sem os 200 euros para pagar ao Ivan.
Entretanto, como o outro companheiro de viagem, que nos acompanhou desde Polaminsk –capital da Bielorrússia- não pagou ao Ivan, porque não arranjou trabalho, aquele, deu-lhe uma “enxerto” de pancada que o ia partindo todo –o Ivan praticava Kickboxing.
Tinham passado duas semanas, desde que chegara a Coimbra. Estava sem trabalho, sem conhecer ninguém e, mais grave, não falava a língua portuguesa.
É então que, para piorar, Ivan comunica-me que vai regressar à Bielorrússia, mas não me vai levar. Diz que não vai correr o risco de ser apanhado com uma clandestina na viagem. Comecei a chorar, mas isso de nada valeu para a porrada que apanhei. Ivan, o nosso outrora amigo de família, queria a todo o custo os 200 euros que eu admitira dar-lhe mais tarde.
Fiquei abandonada em Coimbra, sem casa, sem trabalho e sem comida.
Foi por Deus, ou talvez pelo acaso: conheci então o João. Era um rapaz bonito, português, bem aprumado e trabalhava. Ajudou-me nessa aflição. Mas depressa tudo se complicou.


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  Um grupo de homens de leste, contratados por Ivan, encontrou-me. Queriam os 200 euros que ficara a dever ao meu conterrâneo. Eu não tinha. Estava sem trabalho.
Então o chefe do grupo, o Vladimir, disse-me que precisava de receber, embora que, se eu aceitasse, como tinha conhecimento de um trabalho, por excepção, até podia esperar. Naquela situação, eu recebia qualquer coisa. Ou melhor, quase tudo desde que estivesse de acordo com os meus princípios. Ora, neste caso, era de trabalho que se tratava, isto segundo as palavras de Vladimir.
Entrei no seu carro, seria, mais ou menos, uma e pouco da manhã, conjuntamente com outros companheiros, e seguimos para os arredores de Coimbra. Entrámos numa casa. Pelas poucas roupas das raparigas, apercebi-me imediatamente que estava dentro de um prostíbulo.
No meio de um mar de lágrimas, pedi por tudo de mais sagrado a Vladimir que me levasse dali. Queria trabalhar, sim, mas num serviço normal, argumentei, não naquele inferno. Eu não queria ficar naquela casa, roguei, implorei, mas de nada valeu.
Deixara a minha carteira no carro. Pedi a Vladimir que ma devolvesse. Este, perante o meu choro embrulhado em preces de lamentações, disse: “ficas aqui só uma hora, que eu vou tratar de uns assuntos, volto, e depois levo-te. Deixa a carteira, não te preocupes, depois entrego-ta”.
Fui levada para um quarto todo colorido, daqueles, com camas redondas, que satisfazem as delícias de qualquer homem cheio de desejo carnal. Sobretudo os que ali vão fazer o que não fazem em casa.
Passou uma hora, duas, três e eu comecei a chorar. Fui confortada pela dona da “casa de meninas”. Disse para eu ter calma que tudo se resolveria. Eu estava paralisada de medo. Nem sabia o que fazia. Mandou-me vestir uma saia muito curtinha, uma blusa de largo decote, que praticamente não cobria os meus seios, deu-me uns sapatos vermelhos de grades saltos e, já depois de equipada, acompanhou-me ao salão central da casa.


                                         
                                            
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 A sala estava repleta de seres que se embrulhavam entre si. Naqueles sofás vermelhos, cor de sangue e de desejo, por entre uns copos de bebida, as mãos dos homens, ávidos de carne, percorriam o corpo das mulheres presentes, centímetro a centímetro. Só vira aquele cenário em filmes. Nunca pensara vir a ser actriz de uma novela destas na minha vida.
Enquanto pensava, uma voz num microfone, que comunicava com todas as divisões da casa, anunciava que, directamente da Rússia, chegara uma nova contratada. Ou seja, no meio das brasileiras e portuguesas já muito vistas, havia carne fresca para dentes ansiosos por novidades e sequiosos de prazer. Fui arrastada para o meio da sala por uma mulher que me envolveu num abraço de ilusão.
De repente, fui rodeada por mais de uma dezena de homens. Experimentei aquela sensação de ser um bicho raro num qualquer circo. Senti que muitas mãos procuravam o meu corpo. Senti-me invadida no meu ser, apalpada de qualquer meio. Resisti como podia. Um ofereceu-me logo 100 euros para subir comigo ao quarto de cima. Dois amigos superaram a oferta: se eu subisse com os dois receberia 200 euros.
Comecei a chorar desalmadamente, ao mesmo tempo que fazia gestos de recusa. Estava em choque. Os homens, aquelas pessoas que, certamente, nas suas casas seriam bons pais, bons chefes de família, ali, à minha frente, ao meu lado, eram simplesmente selvagens.
Mais uma vez Deus, ou outra ajuda transcendente qualquer, veio em meu auxílio.


                                        
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  No meio daquele ambiente de Sodoma e Gomorra, como por milagre, ouvi uma voz a falar em russo: “já percebi que estás aqui contra a tua vontade. Não pertences a estes meios de prostituição. Se quiseres, ajudo-te a fugir”.
Alguém já sentiu estar morto de sede e aparecer umas gotinhas de chuva? Dizemos que aquela água não interessa? Foi o que eu senti. Claro que aceitei. Eu estava morta de medo.
Era o Boris, um ucraniano que fazia segurança naquela casa, mas, por sorte minha, era a sua última noite de trabalho. Ia para Lisboa trabalhar como padeiro. Estava farto daquilo, disse-me.
Argumentei que os documentos tinham ficado no carro, não tinha passaporte nem outro qualquer documento de identificação. Se calhar o melhor seria esperar pelo Vladimir. O Boris começou a rir-se. Como podes tu rir nesta minha aflição? Interroguei. Desculpa –disse o meu salvador ocasional-, “és mesmo inocente. Então acreditas que ele volta? Não rapariga, ele não volta mais! E se voltar, será para te extorquir dinheiro”. Ali mesmo, à sua frente, mais uma vez, me desfiz em mil prantos de solidão. Mentalmente, pensei na minha mãe e nos receios que me manifestou à partida do meu país.
Não sei se fora uma atracção repentina para Boris ou se se apaixonara por mim, a verdade é que ele atira-me de supetão: “vem comigo para Lisboa. Vais para minha casa. Vamos viver juntos. Se fizeres isso, vou conseguir-te o passaporte”.
Ali, rapidamente, em fracção de segundos tive de pensar. Era como se estivesse no cimo de um precipício, se avançasse morria, mas para trás era impossível. Imaginava vários mastins de dentes esfaimados para me rasgar a carne. Naturalmente não tinha alternativa, teria mesmo de aceitar o compromisso de ir com ele para Lisboa. Alguma coisa se haveria de arranjar.
Ele pagou o meu quarto, cerca de 25 euros –deu para eu perceber, depois do Boris me explicar, que, naquela casa, qualquer prostituta pagava diariamente 25 euros pelo quarto e mais 5 para a alimentação. À noite, quando as raparigas trabalhavam, o dinheiro das bebidas era para a casa e o preço do serviço sexual contratado, e praticado no andar superior, seria para a mulher prostituta.
Combinei então com o Boris que descansaria umas horas e logo ao alvorecer da manhã ele chamaria um táxi que nos transportaria até à central de camionagem, e dali até Lisboa.
Pé-ante-pé, levantei-me, quando o homem me chamou, e dirigimo-nos para o carro de aluguer que nos transportou até à cidade. Enquanto percorria aqueles poucos quilómetros, mentalmente, ia engendrando a forma de me livrar deste meu apaixonado à primeira vista. Se eu caísse na asneira de ir para Lisboa com ele, o que aconteceria depois? Quando chegámos à entrada da cidade já sabia o que deveria fazer para me ver livre daquele chato.
Ó Boris –disse eu- estive a pensar, o melhor era eu ir a minha casa buscar umas roupas e depois vou ter contigo a Lisboa. Podes acreditar que vou mesmo…aliás, tu és mesmo a minha última esperança para me arranjar o passaporte. Não sei onde fui buscar tanta coragem e, sobretudo, convicção. A verdade é que, apesar de fazer tudo para me levar imediatamente com ele, aparentemente, acreditou e até me deixou 5 euros para eu fazer uns telefonemas. Ele partiu para a capital e eu, mais uma vez, fiquei entregue à minha sorte.


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  Mal ele embarcou no autocarro para Lisboa, liguei logo ao João, o rapaz português que já me salvara antes. Ele morava na Figueira da Foz. Logo, nessa manhã, embarquei no comboio em direcção à cidade da praia da claridade.
Quando me abraçou na estação da cidade, ali mesmo, sem rodeios, o João deu-me um longo beijo e confessou-me que gostava de mim. Se eu quisesse, ficaríamos a viver maritalmente juntos numa casa de renda que ele repartia com um irmão. Aceitei. Gostava deste rapaz, era terno e dedicado. Sabia dar-me o que eu precisava, sobretudo o afecto de que estava tão carenciada.
O João trabalhava numa pequena empresa, com uma máquina ligada à construção civil. Neste verão de 2004 eu começava uma nova vida sem nunca contar aos meus pais que estava presa neste país por não ter documentos.
Eu queria trabalhar em qualquer coisa, mas o João nunca deixou: era muito ciumento.
Passados uns tempos fui novamente abordada pelo Vladimir, aquele que me fugiu com os meus documentos no carro. Começou a pressionar-me por causa da dívida de 200 euros que eu tinha com o Ivan, aquele que eu pensara ser amigo e me desencaminhara das terras dos antigos Csares.
Ameacei ir à polícia. Então o chantagista, já a fraquejar, começou por me convidar a ir com ele para Lisboa durante duas semanas, tempo que a mulher demorava a regressar de uma viagem. Se eu fosse dar-me-ia o passaporte. É óbvio que recusei. Passados tempos, voltou a contactar-me para que eu lhe desse 150 euros e, em troca, devolver-me-ia os documentos. Mas eu não tinha dinheiro. Os euros, durante estes anos todos, nunca pararam muito tempo na minha mão. Até que deixou de comunicar comigo. Evidentemente que a saudade –esta palavra tão portuguesa- não me consumiu.
Ainda estive a viver na Figueira da Foz com o João cerca de três anos. Mas, já viram, a sorte nunca quisera nada comigo. Para meu azar, ele começou a fazer-se acompanhar de pessoas muito duvidosas e iniciou-se no consumo de heroína. Entretanto fiquei grávida. Nesta altura, começaram também os maus-tratos do meu amado amor.
Na esperança de o desviar de um vício que o haveria de consumir e se tornaria num amor maior do que eu, e também para fugir a um provável encontro com o detentor do meu passaporte, consegui convencer o João a sairmos da cidade-praia. Arrendámos uma casa e fomos viver para uma aldeia nos arrabaldes de Coimbra. O João era pedreiro e ganhava bem. Porém, a desgraça tinha assentado novamente arraiais na minha vida. O meu companheiro estoirava tudo na droga e não pagava a renda da casa. A seguir, num percurso que já conhecia bem, vinha a violência verbal e física.


                                         
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 Fomos para outra aldeia lá próximo. Estamos em 2007. É nesta terra que nasce o meu anjinho -este meu amor inocente que dorme profundamente ao meu lado enquanto viajamos de avião em direcção à Bielorrússia.
Já com o meu filhinho nos braços, constato que a minha sorte continua madrasta: para além de não se pagar a renda da casa, tenho a luz e água cortada e, mais grave ainda, o meu tesouro, carne das minhas entranhas, tem fome e eu não tenho dinheiro. Deverá ser a maior provação que uma mãe pode passar é ver um filho com fome e não ter nada para lhe dar.
Tive uma grande discussão com João, como era já hábito, embrulhada em violência. Como de outras vezes, depois de serenarem os ânimos, abraçados num longo e profundo beijo, ele prometeu mudar de vida.
Mas, verdadeiramente, com a continuação, a única coisa que se mudou foi mesmo de terra: mudámos para outra aldeia. A vida dele, e por inerência a nossa, nunca mais foi diferente. Ou se mudou mesmo foi para pior. O João gastava tudo em heroína. Para além de vender tudo o que tínhamos em casa, mesmo até o abono que era do meu menino e, às vezes, algum dinheiro que os meus pais enviavam tudo se esfumava na bruma daquela maldita droga que consumia os meus sonhos.
Apesar de os meus pais não saberem o que se estava a passar, uma vez, tinha o meu companheiro uma multa para pagar, pedi ajuda monetária à minha mãe. Ela, coitada, como toda a mãe, pareceu adivinhar o meu sufoco e enviou-me 500 euros. Quando o João pressentiu que eu tinha recebido o cheque não descansou enquanto não o apanhou. Gastou o dinheiro todo no vício e não pagou a multa. Foi o fim. Ou quase, porque o João, o pai da minha criança, foi sempre o amor da minha vida. E coração de mulher que ama, como por magia negra, tolhe o cérebro no discernimento, faz-nos abdicar da liberdade, tornando-nos escravas daquilo que mais abominamos.
E agora, o que vou fazer sem documentos? Quem me ajudará nesta aflição?


                                       
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  Estamos em meados de 2008, com o meu menino nos braços, a minha maior riqueza, fui bater à porta da Segurança Social em Coimbra. Depois de uma longa explanação naqueles serviços, tão difícil, só quem sabe quanto custa contar uma longa história que parece impossível de ter acontecido, fomos enviados para uma instituição de apoio a vítimas de maus-tratos.
Não tardou muito que João me descobrisse. A primeira vez que ele pediu para falar comigo, estava todo aperaltado. Parecia aquele João, de olhos azuis, ternos e melosos, que eu conhecera uns anos antes e que pensara ser o meu ancoradouro nesta vida. “Com promessas e bolos se enganam os tolos” e, mais uma vez, fui levada à certa pelo seu instinto de manipulação. Na instituição, que tão bem me trataram, bem me avisaram, mas coração apaixonado tem ouvidos? Lá comecei eu a sair outra vez com ele. Comecei a fazer pequenos trabalhos de limpeza para ganhar algum dinheiro e poder comprar umas prendinhas para o meu pequenino.
Entretanto, através da Segurança Social, arranjei uma ama para o meu filho –uma segunda mãe, ao lembrar-me não posso impedir as lágrimas de inundar os meus olhos- e comecei a trabalhar na cozinha de um restaurante da cidade. Ganhava 265 euros por mês, das 10 às 16 horas, diariamente. No princípio, naquela casa hoteleira, estava tudo a correr muito bem e o João já falava em irmos viver os três para uma casa arrendada.
E arrendou mesmo. Se não fosse quase obrigar-me e os bons conselhos das minhas amigas da instituição de acolhimento, mais uma vez teria ido ao charco. Ia ter com ele, lá a casa, ao fim-de-semana. Começaram outra vez os mesmos martírios que eu conhecia tão bem. Ia à minha carteira e furtava-me dinheiro e, uma vez, até o telemóvel, que vendeu. Foi preso algumas vezes. Numa última, por assaltar automóveis. Para terminar mais um episódio de esquecimento, um Sábado entrei na nossa casa comum e dei com ele com outra mulher na cama que era nossa.
Passados alguns meses, a dona do restaurante entra em rotura familiar. Cheia de stress, irritada, passa a descarregar a sua frustração em mim. Torna-se má. Foi como se fosse tomada de um racismo que estava enterrado nas catacumbas da sua alma. Ofendia-me profundamente. Há cerca de dois meses, despedi-me e não me pagou o último mês de trabalho.
“Atenção senhores passageiros, estamos prestes a entrar no aeroporto de Polaminsk. Façam o favor de apertar os cintos” –avisava uma voz feminina através do intercomunicador do avião, como que a cortar os meus pensamentos. Olho lá para baixo, as luzinhas que tão bem conheço e que deixei há sete anos aproximam-se.
Quando penso que deixei para trás o Portugal que trago atravessado no coração, fico inundada de tristeza. É a minha segunda Pátria. Um dia hei-de conseguir voltar. Custe o que custar. O meu menino tem nacionalidade e sangue português. Sofri muito, mas encontrei gente boa que inundou a minha alma de contentamento e me preencheu a memória. O meu muito obrigado a todos. Espero um dia, não sei quando, voltar a abraçar cada um de vocês que me trataram tão bem.
Estou a chorar, desculpem-me, é mais forte do que eu. Lembro-me do meu amor que deixei aí, o João. Ainda em Coimbra, antes de partir para Lisboa, tentei falar com ele pelo telefone. Não me atendeu. O que irá acontecer à sua frágil vida, agora que está só e sem poder dar um beijo ao fruto do nosso amor?


NOTA FINAL: Nesta história real, contada na primeira pessoa, todos os nomes foram alterados. A esta Anastasya, que conheci bem, que é uma pessoa boa -apenas teve azar na forma como entrou e na substância da sua passagem- e ao seu menino, em meu nome –em nome de todos os portugueses, se posso falar assim- desejo-lhe as maiores venturas e felicidades. A má sorte não estará sempre atrás da porta. Acredito que será recompensada em dobro pelas provações e por tudo o que passou aqui.

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