sábado, 27 de fevereiro de 2010
A MENINA FRANCELINA
Sempre que me cruzava com aquela mulher sentia-me intimidado. Ela era uma trintona linda. Relativamente alta, bem torneada, como se as suas formas fossem moldadas pelas mãos de mestre André –o oleiro lá da aldeia. Sempre de preto, daquele luto carregado que faz carpir mágoas só de olhar. Constava-se lá no lugarejo que Francelina era viúva de um soldado que fora para a guerra colonial e não voltara mais do outro lado do mar. Verdadeiramente, ninguém sabia quase nada daquela mulher-mistério. Segundo dizia o senhor Ambrósio, da venda, ela já nascera viúva. Como quem diz, que quando viera viver para o lugar, para além de uma mala de cartão, não trouxera absolutamente mais nada.
O seu rosto, de faces rosadas, nariz aquilino e uns olhos expressivos de olhar libidinoso, parecia o de uma boneca de porcelana, vinda da Alemanha Ocidental. O seu peito, de seios pequenos e seguros, fazia lembrar a modelo que serviu de inspiração ao busto da República. Para lhe dar um maior toque de enigma, durante a semana, os seus cabelos negros, cor de azeviche, como que a tapar a tentação, eram escondidos por um bordado lenço preto. Como sempre, ao Domingo, à hora da homilia, com o templo semi-cheio, era das últimas crentes a entrar. O seu passo ondulante, provocador e meloso, ecoava nas pedras frias da pequena capela. “Slap…slap…slap”, assim era o chão martelado pelos seus sapatos, como se quisessem mostrar a galhardia de transportar aquele monumento vivo. Todos os presentes estavam de pé, porque o padre Albino estava prestes a começar a missa. Perante aquele ritmado matraquear no silêncio, todos se voltavam para a porta principal. Até o senhor abade, que estava a começar a frase de boas-vindas, “Em nome do Pai, do Filho e do Espí…ri…”, ficava suspenso como se balouçasse, num abismo, entre o pecado e a virtude.
Na primeira fila de bancos, alinhados a nível e a fio-de-prumo, pelo “Manel” Sacristão, religiosamente, estavam todas as carpideiras da aldeia. Quando passava o choque inicial, nesta primeira fila, em frente ao Santo padroeiro, só se ouviam cochichos. Era preciso o senhor padre chamar a atenção para a necessidade de silêncio, já habituado ao clique do cortar na casaca do próximo pelas mulheres do soalheiro.
Os homens casados, presentes no templo, acompanhados das suas mulheres, faziam um grande esforço para, como cães esfaimados, não olharem para a diva daquele lugar recôndito. Eu estava no meio do salão. Do meu lugar privilegiado de observação, via o “Jaquim” da Cristina começar por olhar o tecto escarafunchado da capela, a seguir mirava o senhor prior, depois as pranteadeiras. Rapidamente, de soslaio, espreitava a Cristina, a esposa, e, se esta estivesse a orar de olhos postos no chão, era um deleite ver como o “Insquim” tirava as medidas, de alto a baixo, ao corpo da Francelina.
Fosse lá pelo que fosse, talvez por sorte minha, esta bela mulher veio sentar-se mesmo ao meu lado, envolvida num largo casaco comprido de lã. É certo que era o único banco que tinha apenas quatro pessoas dos cinco em limite. Talvez fosse por isso. Ou talvez não. Esta provocação ambulante, de certeza absoluta, já deveria ter notado os meus olhares faiscantes de desejo. As mulheres têm um sexto sentido para adivinharem quando são desejadas ardentemente por um homem. Bom…era certo que de homem eu tinha pouco. Era ainda adolescente. Estava então com catorze anos. Acho que tinha pouco encanto –pelo menos as garotas da minha idade quase nem olhavam para a minha cara magricela, com uma penugem a querer romper, e aquelas malditas borbulhas. Se ao menos a barba crescesse, sempre pareceria mais adulto. Mas a natureza não estava virada para me fazer a vontade. Eu fazia tudo para parecer igual ao meu pai. Quando estava sozinho em casa pegava nas suas “gilletes” e, depois de ensaboar o rosto várias vezes, rapava, rapava, até a pele ficar vermelha cor de sangue. Como se dizia que havia um remédio santo para fazer crescer os pêlos, volta e meia, lá ia à capoeira das galinhas e barrava o rosto com os dejectos dos galináceos. Mas nem assim: a minha barba era de “espera-galego”.
Eu andava desesperado. As minhas hormonas andavam em fúria. Pareciam cavalos selvagens. É certo que, em monólogo diário, na minha velha cama, em festinhas ritmadas, tentava conseguir alguma acalmia, mas qual quê? O meu corpo clamava veementemente pela carne feminina. Mas não era fácil. Eu tinha poucos encantos. Ai, de certeza, só podia ser mesmo isso. Até a Delfina, que tinha 17 anos e era uma doidivanas do “camano” –dizia-se que tinha tirado os três vinténs a todos os rapazes da minha idade-, não me passava cartão. Eu já fizera tudo para me enrolar com ela. Juro que é verdade. Ofereci-lhe um ramo de malmequeres e nada. Dei-lhe uma chouriça, que tirei do fumeiro da nossa lareira, e menos ainda. Numa daquelas noites em que o desejo não me deixava dormir, escrevi um profundo poema de amor à minha apaixonada Delfina. Pois sim! Continuou fria comigo como a pedra-mármore da pia de água-benta lá da capela.
Estava embrenhado nestes meus pensamentos, quando comecei a sentir na minha perna uma outra perna, em calor ardente que nunca sentira antes. No primeiro toque, afastei o meu membro inferior como se me tivesse queimado. Mas aquela perna sedosa, envolvida numa meia rendilhada negra, procurava desesperadamente o toque da minha. E eu deixei. Como se me abandonasse nos braços do pecado e da luxúria, fui-me deixando arrastar em pensamentos eróticos.
O casaco preto da Francelina envolvia o seu corpo e as minhas pernas escanzeladas. Sem saber o que fazer, se havia de fugir dali ou embrulhar-me cada vez mais no pecado feito gente, naquele toque de frémito, ali me tornei homem.
* Texto escrito para a Fábrica de Histórias, com o mote "Pecados e Virtudes".
Link: http://fabricadehistorias.blogs.sapo.pt/42896.html
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2 comentários:
Mal a descobre e sai-se logo com uma destas!!!
É assim mesmo!!! ;)
Obrigada, SDaVeiga. A menina é uma querida. Mesmo indo eu concorrer consigo, ainda tem forças para elogiar o meu texto pecaminoso -es pero que a Menina Delfina não leia o seu comentário. Olhe...fico-lhe grato. Já viu que quando falo em "concorrer" é uma graça. O que interessa é o gosto que (ambos) temos em escrever. Isso é que é verdadeiramente importante.
Uma grande abraço de amizade.
Luis
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