(Imagem de "Recordações de Coimbra")
De tempos a tempos somos acometidos de uma nuvem tóxica
que nos invade, ocupando todos os nossos espaços, visual, mental, sociológico e
político, e tudo, o que anteriormente era o epicentro das nossas preocupações,
deixa de ter importância. De repente este país de velhos, de meia-idade e de
novos acorda de uma modorra recorrente e, em metáfora, como viesse à janela,
grita a plenos pulmões: “Acudam! Que os homens estão a bater nas mulheres!”. Este
grito de Ipiranga, que em vez de libertação carrega frustração, parece mesmo
uma súplica, como se acontecesse pela primeira vez, mas não é. Desde o lugar
mais recôndito até à cidade grande não se fala em outra coisa. Os ecos de
indignação chegam a São Bento e a tudo quanto for poder, desde o bispo até ao
presidente da junta de freguesia. O Governo convoca o conselho de ministros e
realiza uma reunião extraordinária. O ministro da pasta dá um murro na mesa: “é
preciso criar mais uma lei agravada!”. Num ápice, bater na patroa passa a ser crime público e sai legislação em barda
para salvaguardar a mulher da ira do mastodonte abrutalhado. Como se se
varresse o pó para debaixo do tapete sem verificar a causa e sem tratar do
caruncho que lhe dava origem, entra-se aparentemente num mundo novo sem educar,
sem ensinar para alterar a mentalidade dos sujeitos. O que muda é a coercitiva obrigação de
tratamento. Mas a cultura e os costumes não se convertem de um dia para o outro e
apenas por decreto. Ninguém se lembra que, sem uma pinga de indignação durante
todas as gerações hodiernas, contemporâneas e ancestrais, foi normalíssimo
ouvir gritos de dor na vizinha mas não se intervinha porque “entre marido e mulher ninguém deveria meter
a colher”. O resultado destas correrias e alterações legislativas
traduziu-se, só no ano passado, em cerca de três dezenas de mortes por violência
doméstica.
Agora o que está na moda – e até surgir outro
tema que abafe este- são as praxes académicas. As conversas são recorrentes
entre todos os becos e esquinas, passando pela tasca mais remelosa, jornais e
revistas e até a RTP1, com os Prós e Contras
a ser realizado em Coimbra para a semana, sai de Lisboa para se apresentar na
cidade dos estudantes a discutir a prática estudantil.
Num piscar de olho, os estudantes
passam de bestiais a bestas. De inocentes almas de capas pretas e futuro da
nação, passam a corvos negros e a ser piores que um “serial killer”, assassino em série –dixit, Filomena Martins, no Diário de Notícias
(DN) de 25 de Janeiro. Continuando a citar esta jornalista no artigo com título
“O que é uma praxe?”, “são idiotas, humilhantes
e animalescas. São crime”. Também Catarina Martins, professora
universitária e que há vários anos se insurge contra esta prática académica,
diz que “são o aviltamento, com inegáveis
contornos sexistas. São meros ritos de passagem, sado-masoquistas, de chefes,
com veia ditadora de feira, com o fim de criar círculos de conivência e redes
de compadrio de potencial utilidade no futuro. (…) É chocante verificar que os
estudantes universitários e também a Academia continuam, através de todos os
seus componentes, a ignorar do alto do Olimpo o que se passa”.
No mesmo DN, do dia 25,
Duarte Marques, deputado do PSD, em resposta a uma pergunta, afirma: “Repare que não vê relatos de abusos em
Coimbra”.
Mas o que vemos na Internet? Alunas brasileiras a ostentarem cartazes com frases discriminatórias proferidas por professores e alguns alunos na Universidade. Como até agora não se viu grande reacção de quem a deveria remeter, presume-se que isto se passa numa outra Coimbra, que não a Lusa Atenas.
Mas o que vemos na Internet? Alunas brasileiras a ostentarem cartazes com frases discriminatórias proferidas por professores e alguns alunos na Universidade. Como até agora não se viu grande reacção de quem a deveria remeter, presume-se que isto se passa numa outra Coimbra, que não a Lusa Atenas.
SIM OU NÃO?
Como ressalva, gostaria de dizer que não tenho
uma posição muito definida assente no patológico maniqueísmo, sim ou não, que teima em enevoar esta questão. Não sei se se deve proibir
porque não –como já li e ouvi a
tantos comentadores-, não sei se deve continuar porque sim. Na minha forma tosca de ver este problema, como em tudo, há
sempre um campo neutro entre os radicais “sim”
e “não”. É nesta terra de ninguém, entre nim e o talvez que não se discute, que
residem os pormenores, a essência das coisas, a motivação para os actos. A meu ver,
é aqui, partindo pedra a desbravar o conhecimento, que se deve procurar a origem
de todos os males. Acho que a sociedade portuguesa enferma de um problema
endémico, talvez herança do Antigo Regime autoritário do Estado Novo, resolve
tudo -sem resolver nada- com a proibição. A solução para todos os males, na
óptica de quem tem poder, está na legislação agravada e na coima –a propósito, ainda
hoje verifiquei um facto incrível: quem for apanhado sem bilhete num autocarro
dos SMTUC, em Coimbra, terá uma multa única de 160 €. Saliento que o preço do
título de uma viagem, se adquirido no motorista, é de 1,60 €. Uma coima destas,
para além de ser anti-pedagógico, eivada de ódio à prevaricação –como se a perversão e o subterfúgio fossem transcendentais, não humano, e não estivesse dentro de nós- e desrespeitosa pelo utente,
está carregada de iniquidade e imoralidade. Só juristas que não têm o mínimo de
conhecimento da antropologia e psicologia de massas podem legislar assim.
Em vez de se procurar a razão na nascente,
na causa comportamental, para chegar à foz, à consequência de todos os
desmandos, faz-se o contrário, começa-se pelos estragos a jusante, proibindo ou
penalizando fortemente o infractor, como se esta ilusória construção de diques
para evitar futuras repetições levasse a qualquer lado, e daí lavando as mãos
como Pilatos. Dos resultados nem é preciso escrever, basta lembrar as mortes
por violência doméstica.
MAS E POR QUE NÃO? E POR QUE SIM?
Começo por dizer que cumpri o serviço militar.
Ora para quem lá andou, sabe-se que a tropa assenta fortemente no tradicionalismo
da praxe. Deve-se também acabar com este ritual? Ou, como está acontecer com os
exageros da Academia Militar, porque já existe normatividade no Código Penal, levar a juízo aqueles que, em posição de domínio,
abusam? Aproveito para contar o quanto a tropa me fez bem e ajudou a desenrascar-me
na vida. Até ir para a vida militar, porque era muito tímido, nunca tinha
pedido boleia porque tinha vergonha. Curiosamente, assentei praça em
Estremoz e também para poupar o dinheiro da viagem, juntamente com outro amigo, fazia
todo o trajecto, de mais de 300 quilómetros, até Coimbra de polegar içado e mão
estendida na estrada.
Mais ainda, pegando nos
considerandos de tantos articulistas que encaram a praxe como um cerimonial de
humilhação e submissão, será que a colectividade, na sua hierarquia de poder,
não assenta fortemente numa práxis –tentando
manter as pessoas ocupadas fisicamente para não pensarem-, numa prática
vertical de cima para baixo? Será que esta declarada humilhação e submissão,
quando não atente à liberdade e ao valor vida, perante o mais forte não será de
todo saudável, no sentido de que faz libertar o rugir do leão que está dentro
de cada um? Ou pelo contrário, os mais velhos e tomando em conta o que somos, a dureza fez
de nós animais amestrados? Continuando a escrever por escrever, poderemos
especular: será que os nossos filhos, os jovens de hoje, que não vão à tropa,
não passaram nem uma ínfima parte das nossas dificuldades, serão e estarão mais
disciplinados e preparados para o grande combate que é a vida, nesta crise que
vivemos?
Mais ainda, vivemos numa
sociedade polarizada em dois extremos, ou bipolar. Nesta questão avaliaram-se
sempre os estudantes como o resultado da educação dos pais –cá está a
bipolaridade: pais/educandos. Daí a célebre geração rasca, baptizada por
Vicente Jorge Silva, em 1994, enquanto director do jornal Público. Mas esquecemos
todos que nesta questão da educação a formação –através dos formadores- também
conta. Neste caso a colectividade deixa de ser bipolar para ser tripolar. E, naturalmente, devemos chamar à colação os professores. Achei sempre muita
graça, desde o início do mandato de Sócrates em 2005, avaliarem-se os professores
do ensino básico e do Secundário mas colocarem sempre os do ensino superior
de fora. Acontece que, na minha forma de ver, nesta questão das praxes académicas alguns professores universitários, pela sua postura arrogante e de constante
humilhação e submissão do aluno, também contribuem muito para o que se passa
fora de aulas. Eu andei lá há poucos anos e posso escrever sobre o que vi. Saliento
que felizmente há excepções e muitas mas as ovelhas negras, como diabretes a
espalhar o vírus do mal entre uma geração recentemente tomada como maior de
idade, estão lá. Quantos alunos se suicidaram por falta de enquadramento nas
matérias e sem que o regente da cadeira movesse uma palha para lhe acudir? Ninguém
sabe, porque também não haverá muitos estudos sobre esta causa-efeito destruidora de sonhos. Quantos
alunos ficaram traumatizados pela vida fora e apanharam esgotamentos pela forma
como foram tratados em exames de orais? Ninguém sabe, porque também não
interessa esgravatar no fundo da estrumeira. O que está na moda, agora, é mesmo discutir a praxe. Ponto e parágrafo.
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1 comentário:
Excelente texto.
Só quero esclarecer uma questão, esse caso das alunas brasileira que se dizem vitimas de xenofobia e discriminação, foi mais um caso de politica barata sem qualquer fundo de verdade, trata-se apenas de uma campanha protagonizada por uma lista candidata à AAC que procurava mediatismo.
A reitoria investigou e não houve nenhuma denuncia oficial relacionada com estes casos.
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