quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

O CORDEIRO, DE DEUS, DE UM OUTRO DEUS QUE MORREU



 Passei à hora do almoço na Praça 8 de Maio e no mural das recordações necrológicas –no prédio que faz redondo para a Rua da Louça-, que sistematicamente me habituei a verificar se por lá consta o meu nome, lá vi a foto e a comunicação pública do falecimento do António de Assunção Cordeiro (Tinoco), de 79 anos.
O Cordeiro, como sempre, por aqui pela Baixa, foi conhecido, e que desaparece agora do nosso mundo para o outro, merece umas palavras de reconhecimento. Durante mais de duas décadas, talvez entre meados de 1970 e finais de 1990, este homem simples abasteceu, com encomendas, todas as grandes e pequenas lojas do Centro Histórico. Pareço estar a vê-lo a empurrar uma carroça de duas rodas carregada de grandes pacotes, provindos das fábricas de confecção e tendo como destino os grandes estabelecimentos que fizeram história na cidade. Hoje, ao constatar o desaparecimento do Cordeiro é como um pouco de todos nós que se vai. É como se um marco simples tão ligado à actividade comercial partisse e dissesse muito mais do quer dizer pela despedida natural. Em metáfora, é como se o Deus que protegia toda a classe, aos poucos, deixasse de o fazer e como se a abandonasse, num esboroar de memória, agora tudo se vá. O que fica nestas ruelas de recordação, na maioria dos casos, são lojas encerradas que foram grandes catedrais de compra e venda e, aos nossos olhos, constituem um dó de alma que faz chorar o mais insensível.
Quem nos vai falar do Cordeiro é o Francisco Veiga. Diz o Francisco: “lembro-me muito bem dele. Veio substituir o “Ti" Joaquim, na década de 70. Era um bom homem amistoso, sempre solícito e de uma educação esmerada –“um homem à moda antiga”, corrobora a Cila, a esposa do Veiga. Diariamente, como estafeta, passava nas minhas lojas da Rua Adelino Veiga e interrogava: “há alguma coisa para levantar hoje?”. Se houvesse, lá ia ele com o talão de encomenda para o antigo Cais da Estação. Levantava e entregava. Pagávamos à peça e no fim do mês. Quando era preciso ia também aos CTT levantar pacotes mais pequenos. Tenho muita saudade desse tempo. Ser comerciante nos nossos dias é sentir que se anda por cá porque tem de ser. Porque somos empurrados pelas obrigações que contraímos. Não há motivação. Não dá gozo. É o mesmo sentimento que carregar sobre os ombros o peso de todas as agruras do mundo. Saudade para o Cordeiro. Paz à sua alma!”

Sem comentários: