sábado, 4 de janeiro de 2014

"DÁ-ME UM ABRAÇO!"



 Decorria a tarde a meio, deste dia de Ano Novo, quando passei por ela na Praça do Comércio, junto à Igreja de São Bartolomeu. Chovia na cidade velha, como se São Pedro, o senhor de todas as águas do mundo, quisesse avisar que o ano que se acabara de entrar iria ter muitas inundações nas nossas vidas. De olhos pregados no chão, caminhava como um autómato em esgotamento de pilha. Os seus passos eram vacilantes como se temesse que o chão fugisse a qualquer momento dos seus pés. Num repente de um olhar fugidio, reparei no seu rosto carregado, esticado pela pressão, e impressionou-me a solidão que emanava. Boa tarde, Maria! Atirei de supetão. Ela não ligou, mais que certo por não me ter ouvido, e continuou a andar. Maria, Maria! Insisti. Foi então que ela estancou. Lentamente levantou os olhos, como se as suas pálpebras pesassem uma tonelada, ensaiou um sorriso que não saiu, e disse baixinho: “Boa tarde, Luís! Desculpa! Ia embrenhada nos meus pensamentos. Ando para aqui, de trás para a frente, a queimar tempo. A ver se decido o que fazer da minha vida. Se acabo com ela ou se continuo –e as lágrimas, como se apenas pretendessem um motivo para se soltarem, como rio em busca da margem perdida, começaram a cair por aqueles socalcos rugosos daquela face precocemente envelhecida. Abalei de casa logo de manhã, daquela casa que conheces bem –porque tu conheces a minha vida! Estou farta da minha existência! Estou saturada de ser uma coisa que apenas serve para trabalhar! O Francisco continua sem trabalho, mas também não se importa muito com isso. Ninguém me dá valor! Preciso de carinho! Preciso de um abraço! Os meus dois filhos, como sabes, são como são! Nunca têm uma palavra para a mãe. Eu trabalho lá na superfície comercial. Uma parte do ordenado é descontada a mando do tribunal para pagar dívidas do Francisco, o meu marido. Recebo cerca de 500 euros, que são para alimentar quatro adultos e duas criança –os meus netos. Sabes o que é precisar de comer e não ter? Sabes? Sabes mesmo? São três da tarde e ainda não comi nada –e não estou a dizer isto para te pedir alguma coisa. Nada disso! Nem tenho apetite! Sabes o que é comer um pão cheio de bolor? Eu já comi um há dias. Chorei tanto, tanto! Eu tive uma infância tão feliz! Nada me faltou, do essencial. Só mesmo o que era imprescindível, porque quando  pedia ao meu pai uma camisola bonita, que via numa montra, levava-me lá e, com os meus olhos colados no vidro, dizia: “queres aquela camisola, Maria? Queres? Mas eu não ta compro! Tens de aprender a conviver com o não. As frustrações ajudam-nos a crescer. Esta não ta compro, porque é muito cara, mas vou dar-te uma mais barata". E oferecia-me uma baratinha. Nunca me deixou faltar nada. É certo que não havia luxos mas sempre tive tudo novo a estrear. Olha que, quando andava na escola, às vezes os vizinhos levavam lá os livros usados para mim. O meu pai ralhava logo com a minha mãe: “agradece, mas devolve. Que dêem a quem precise mais do que nós! Para a minha princesa não quero coisas que tivessem passado por outras mãos. Quero tudo novo”. E ia comprar os manuais a prestações à Coimbra Editora. Deveria ter feito o mesmo com os meus filhos e não fiz. Dei-lhes tudo de mão-beijada! Se eles tiveram tudo, como podem agora dar valor ao que nunca lhes faltou? Tenho tanta saudade do meu paizinho! Mesmo já casada e com filhos continuava a ajudar-me em todos os campos. Quando eu chegava a casa do trabalho, por vezes, cansada e não queria ouvir ninguém, lá vinha ele dos fundos a soletrar: “anda cá, Maria! Deixa-me olhar os teus olhos. Sabias que os olhos são o espelho da alma? Hoje não te correu bem o dia, pois não? Dá cá um abraço, filha!”. E eu, enfastiada com tanto apego, dizia para mim: fogo! O meu pai é uma grande melga! É demais! Acreditas que hoje, que não tenho nenhum, sonho com os seus abraços?
Mesmo já velhinho, dizia-me tantas vezes: “enquanto eu for vivo nada te faltará, mas olha que quando eu morrer vais sofrer muito. Eu sei que vais! Terás de ser muito forte, filha!”
Hoje, neste dia de Ano Novo, andando para aqui perdida no tempo como uma folha seca que esvoaça ao vento, nem uma moeda tenho para um café. Tenho tanta saudade do meu pai!"

(Transcrição de um encontro real)

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