sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

LEIA O DESPERTAR...


LEIA AQUI O DESPERTAR DESTA SEMANA 

Esta semana deixo o textos "NÃO HÁ FOME QUE NÃO DÊ FARTURA""ROSTOS NOSSOS (DES)CONHECIDOS: A RAINHA DA NOSSA RUA"; e "A ÚLTIMA CRÓNICA DO MAMEDE".



NÃO HÁ FOME QUE NÃO DÊ FARTURA

Cerca das 8h00 da manhã do último sábado, no Largo da Freiria, alguém colocou dentro e fora do contentor de resíduos cerca de dez sacos com alimentos em bom estado de conservação e perfeitamente comestíveis. Como se tivessem saído há pouco do supermercado, de um dos cabazes do Banco Alimentar, presume-se, poderia ver-se várias unidades de azeite, óleo, cereais, imensos pacotes de bolachas –que ostentavam a designação de “venda proibida”-, salsichas, arroz, manteiga, tostas, massas e farinha.
Liliana Rodrigues, funcionária da sapataria Veludo Carmim, estava incrédula: “já viu uma coisa destas? Quem me chamou a atenção foi o funcionário da limpeza. Recolhi logo os sacos e comecei a dar a algumas pessoas. Estavam aqui mais de 50 euros em valor. Num tempo em que há tanta fome, fazer uma coisa destas é um crime!”
Hélder Fonseca, o funcionário da Recolte, empresa contratada pela autarquia para a limpeza urbana, também estava indignado. “Nunca vi uma coisa assim. Repare que falamos de alimentos em bom estado de conservação. Tanta gente a passar privações e outros que, aproveitando-se do esforço e da boa vontade de quem dá, num desprezo sem limites pelas privações alheias, deitam para o lixo a caridade de tantos!”
Por volta das 11h00 ainda havia vários sacos cheios. Como curiosidade, colocaram-se os alimentos expostos num plástico, no chão, e em menos de cinco minutos desapareceu tudo.
É evidente que estamos perante um caso isolado, e uma árvore sozinha não faz a floresta, mas dá para pensar. O que daqui se apela a quem ler este texto é que não se coloquem bens diretamente no lixo que, mais que certo, farão jeito a outros que nada têm. Se permite a sugestão, em vez de despejar no contentor, deixe fora e exponha o mais possível para que se veja o que está dentro dos sacos. Em nome da Íris e do irmão, que levaram quase todos os alimentos abandonados em vários sacos, agradece-se a sua preocupação. Obrigado.

JÁ QUE ESCREVEMOS SOBRE LIXO…

No mesmo dia, de sábado à tarde, por volta das 17h00, quando Fátima Santos, uma comerciante com loja na Rua Eduardo Coelho, passava na Rua das Padeiras apercebeu-se de uma pequena multidão num grande frenesim. Aproximou-se e verificou que, ao longo da artéria, alguém tinha despejado o que até aí, certamente, teria sido o recheio de uma casa. Eram bonecas em bom estado, eram naperons, louças, cortinas, roupas, uma bicicleta e artigos diversos. Vamos dar a palavra à Fátima: “ o que mais me impressionou foi a ânsia manifestada naquelas pessoas de encontrar alguns objetos de valor. Pareciam atropelar-se uns aos outros. Fez-me lembrar aquelas fotos recolhidas em países do terceiro-mundo, de crianças e adultos a vasculhar nas montureiras. Era uma imagem impressionante. Repare que em cerca de uma dezena e meia de pessoas, muitas delas “arreavam” bem, com vestuário de qualidade.  Não se entende que uns, afirmando-se necessitados, recusando o que lhes dão, mandem fora bens em bom estado e outros não sendo carenciados, esgravatem no lixo.
Sinto-me divida na avaliação deste ato, na forma de despejar assim o “lixo”. Por um lado, quem colocou tudo na via pública permitiu que fosse feita uma escolha, um reaproveitamento, e o destino de algumas boas peças fosse a destruição. Por outro, sentir o que senti ao ver aquela imagem foi algo que transcende a minha própria razão. Aquela representação era um paradigma de pobreza, de desgraça; um espetáculo degradante. Nunca tinha presenciado alguma coisa no género. Creio também que, para a Baixa e para a cidade, não foi um quadro digno. Só gostava que visse como ficou a rua no fim do “assalto”. Parecia que tinha passado por ali um tornado. Deveria ser criado um local próprio onde os particulares pudessem depositar os seus excedentes e para que outros mais necessitados, com outra dignidade e sem o estigma do remexer em lixo, ali pudessem livremente recolher o que lhes interessasse.”


ROSTOS NOSSOS (DES)CONHECIDOS: A RAINHA DA NOSSA RUA

Há mais de dois anos que ando a persegui-la pelas ruas do Centro histórico. Confesso aqui o assédio descarado que lhe movi. Desde o cumprimento meloso com beijinho no dorso da mão até ao convite para um café, nos vários encontros que ocorreram nas ruas da Baixa, tentei tudo para que a Teresinha me desse um pouco de atenção, uma réstia do seu tempo, para eu poder escrever alguma coisa sobre a sua encantadora figura e a sua história de vida. Mas qual quê? Do alto dos seus olhos negros, fixando-me, parecia dizer: “faz-te jornalista, homem, e depois vem falar comigo! Não passo cartão a genéricos!”. É certo que educadamente, quase em despacho sumário, lá saía a proclamação: “hoje não, que não tenho tempo! Quem sabe outro dia?!”. E eu desesperava para conquistar a confiança da Teresinha.
Foi então que, num destes dias de sol a espreitar pelas frinchas da chuva, a encontrei dentro da loja da Lena, na Rua de Sargento-mor. E rapidamente, num silogismo prático e interesseiro, dei por mim a pensar com os meus botões: eureka! Estou salvo! É hoje! Vou pedir à Lena que mova a sua influência perante a minha diva e personagem desta crónica. E foi o que aconteceu. A Lena falou e a Teresinha imediatamente confiou. E contou. Obviamente que não vamos falar de quantas primaveras já passaram na sua vida –porque os anjos são eternos. Tem os anos desde que nasceu até hoje. E desde que trintou nunca mais lembrou. Vamos então ouvir a Dona Maria Teresa Pena:


“Nasci na Bairrada, numa quinta. Era ainda uma menina quando vim para Coimbra. A cidade dos estudantes é a minha segunda alma. É por ela que versejo: penso, começo a pensar, quando estou fora da cidade e volto dá-me vontade de chorar! Estava a fazer o curso de enfermagem quando conheci o amor da minha vida, o meu marido. Eu era muito linda! Por ele interrompi a formação, casámos e fomos para Lourenço Marques -hoje Maputo-, Moçambique. Ele era médico militar. Com ele conheci toda a África Austral, a Ásia e a Europa.
Sou viúva e uma pessoa muito simples. Há certas coisas que não gosto. Estou representada em fotografias pelo mundo inteiro. Juntamente com o meu falecido esposo, estive em Macau. Fui a mais linda de Macau! Aqui pratiquei Karaté e fui cinturão negro. Ai de quem se chegar a mim –e mostra uns movimentos rápidos com as mãos. Eu era muito linda! Até a Amália Rodrigues, que foi lá cantar, parou para me ver. Um dia, lembro-me bem, ia na rua e chocaram dois carros por causa de mim. Eu era muito linda! Um dia entrei num campo de futebol, com as duas minhas filhas pela mão, e as bancadas levantaram-se para me ver. Eu era muito bonita! Queriam que concorresse a um concurso de beleza mas, para além do meu homem ser muito ciumento, eu nunca quis. Sempre fui uma excelente dançarina. Tudo parava quando eu rodopiava na roda. Ficava tudo de pé, a olhar-me, como se eu fosse uma princesa. Eu era muito linda! Em 1965 cantei o fado no Teatro Gil Vicente, em Lourenço Marques. Estava a sala cheia quando cantarolei “eu vi a Amélia no arvoredo…”. Regressei a Coimbra por alturas do 25 de Abril de 1974. Eu era muito linda!!
Hoje, qualquer homem me tem muito respeito. Os turistas pedem-me para tirar fotografias. A minha imagem está em todo o lado. Estou representada na China, nos Estados Unidos, no Brasil e no Japão. É demais!! Há dias, em frente à Brasileira, ali na rua de cima, estiveram sete repórteres a fotografar-me. Tudo com muito respeito! Fui rainha da Rua de Sargento-mor em 2011. As escadas do Gato estavam cheias de gente para me ver. Todos bateram palmas. Tive lá na rua um poster grande com a minha foto –você não viu? Agora as pessoas dizem-me que sou a rainha de Coimbra inteira. Sou feliz! Respeito toda a gente, desde o sem-abrigo ao mais alto na sociedade. Vivo só porque quero. Por opção! Sou muito independente. À noite nunca saio. Não há ninguém que tenha alguma coisa a apontar-me. Sou muito seletiva não dou confiança a ninguém –não gosto dessas coisas! A Rua de Sargento-mor é o meu paraíso. Aqui está a minha família. Gosto muito da Leninha! Se passar um dia sem cá vir, liga-me logo e sempre. O que é que você está a escrever? Veja lá! Está a ouvir? Olhe que eu sou uma senhora de muito respeito!”


A ÚLTIMA CRÓNICA DO MAMEDE

 Conheci-o pela primeira vez no início da década de 1980, quando me estabeleci por conta própria no Largo da Sé Velha, em Coimbra, com o café com o mesmo nome do ancestral largo. Nessa altura, o Eduardo Mamede era ainda um rapaz de vinte e poucos anos e também meu cliente diário.
O Mamede era um cronista de excelência, sobretudo de História de Portugal e então sobre Coimbra sabia tudo, ou, como observador atento, pouco lhe teria escapado. O nosso conhecimento aproximou-se também porque eu, de vez em quando, querendo imitar analistas como ele, mandava uns desabafos para a “Página do Leitor”, do Diário de Coimbra (DC). E algumas vezes, depois da publicação no jornal, de forma direta, sem rodeios –ele falava o que tinha a falar sem pedir licença-, lá vinha o Eduardo, com o DC na mão, retificar o meu português aprendido nos socalcos da existência: “olhe que esta frase aqui está mal construída. Deveria ter escrito desta maneira!”. E escrevia ao lado.
Durante treze anos que permaneci no Café Sé Velha quase todos os dias trocávamos impressões. Não que fosse fácil, porque o Mamede, com a sua costela monárquica, como se afirmava amiúde, era uma pessoa difícil na aproximação. Na sua idiossincrasia, fazia lembrar um fidalgo brasonado da monarquia. Sempre ereto, de cabeça levantada, no caminhar da vida, não admitia réplica. Era senhor de uma profunda convicção que incomodava, numa quase arrogância implícita, para os simplórios como eu.
Durante muitos anos escreveu para o Diário de Coimbra onde, se a memória não me atraiçoa, chegou a ter uma coluna semanal. Pelo que sei, colaborou em várias revistas sobre história e incluindo heráldica. Sobre a cidade dos estudantes não teria havido nada que não deixasse nota. Desde a guitarra de Coimbra ao fado, desde o Paço de Sub-Ripas passando pelo Jardim Botânico, até à Casa de Domingos Vandelli em Coimbra, pouco da monumentalidade conimbricense lhe teria passado ao lado.
Curiosamente, como professor e aluno, desde há cerca de dois anos, como seu discípulo, vim a emparceirar com ele como colaborador n’O Despertar –o mais antigo semanário da cidade.
Esta semana o jornal traz à estampa a sua última crónica, como sempre assinada “Eduardo Proença-Mamede”. O título, “A CASA DA GERIA”, já denota passado e impregnação a saudade. O Eduardo Mamede deixou-nos. Partiu sem avisar. Tal como a sua última narração, este meu texto tem a presunção de o lembrar também como um excecional historiador, que a cidade perdeu, e um excelente cronista que, creio, a direção d’O Despertar não substituirá facilmente.
À sua mãe e restante família, nesta hora de luto e dor, os meus sentidos pêsames. Até um dia, Mamede.

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