LEIA AQUI O DESPERTAR DESTA SEMANA
Esta semana deixo o textos "NÃO HÁ FOME QUE NÃO DÊ FARTURA"; "ROSTOS NOSSOS (DES)CONHECIDOS: A RAINHA DA NOSSA RUA"; e "A ÚLTIMA CRÓNICA DO MAMEDE".
NÃO HÁ FOME QUE NÃO DÊ FARTURA
Cerca das 8h00 da manhã do último
sábado, no Largo da Freiria, alguém colocou dentro e fora do contentor de
resíduos cerca de dez sacos com alimentos em bom estado de conservação e
perfeitamente comestíveis. Como se tivessem saído há pouco do supermercado, de
um dos cabazes do Banco Alimentar, presume-se, poderia ver-se várias unidades
de azeite, óleo, cereais, imensos pacotes de bolachas –que ostentavam a
designação de “venda proibida”-, salsichas, arroz, manteiga, tostas, massas e
farinha.
Liliana Rodrigues, funcionária da
sapataria Veludo Carmim, estava
incrédula: “já viu uma coisa destas? Quem
me chamou a atenção foi o funcionário da limpeza. Recolhi logo os sacos e
comecei a dar a algumas pessoas. Estavam aqui mais de 50 euros em valor. Num
tempo em que há tanta fome, fazer uma coisa destas é um crime!”
Hélder Fonseca, o funcionário da
Recolte, empresa contratada pela autarquia para a limpeza urbana, também estava
indignado. “Nunca vi uma coisa assim.
Repare que falamos de alimentos em bom estado de conservação. Tanta gente a
passar privações e outros que, aproveitando-se do esforço e da boa vontade de
quem dá, num desprezo sem limites pelas privações alheias, deitam para o lixo a
caridade de tantos!”
Por volta das 11h00 ainda havia
vários sacos cheios. Como curiosidade, colocaram-se os alimentos expostos num
plástico, no chão, e em menos de cinco minutos desapareceu tudo.
É evidente que estamos perante um
caso isolado, e uma árvore sozinha não faz a floresta, mas dá para pensar. O
que daqui se apela a quem ler este texto é que não se coloquem bens diretamente
no lixo que, mais que certo, farão jeito a outros que nada têm. Se permite a
sugestão, em vez de despejar no contentor, deixe fora e exponha o mais possível
para que se veja o que está dentro dos sacos. Em nome da Íris e do irmão, que
levaram quase todos os alimentos abandonados em vários sacos, agradece-se a sua
preocupação. Obrigado.
JÁ QUE ESCREVEMOS SOBRE LIXO…
No mesmo dia, de sábado à tarde, por volta das
17h00, quando Fátima Santos, uma comerciante com loja na Rua Eduardo Coelho,
passava na Rua das Padeiras apercebeu-se de uma pequena multidão num grande
frenesim. Aproximou-se e verificou que, ao longo da artéria, alguém tinha
despejado o que até aí, certamente, teria sido o recheio de uma casa. Eram
bonecas em bom estado, eram naperons, louças, cortinas, roupas, uma bicicleta e
artigos diversos. Vamos dar a palavra à Fátima: “ o que mais me impressionou foi a ânsia manifestada naquelas pessoas de
encontrar alguns objetos de valor. Pareciam atropelar-se uns aos outros. Fez-me
lembrar aquelas fotos recolhidas em países do terceiro-mundo, de crianças e
adultos a vasculhar nas montureiras. Era uma imagem impressionante. Repare que em
cerca de uma dezena e meia de pessoas, muitas delas “arreavam” bem, com
vestuário de qualidade. Não se
entende que uns, afirmando-se necessitados, recusando o que lhes dão, mandem
fora bens em bom estado e outros não sendo carenciados, esgravatem no lixo.
Sinto-me divida na avaliação deste ato, na forma de despejar assim o “lixo”.
Por um lado, quem colocou tudo na via pública permitiu que fosse feita uma
escolha, um reaproveitamento, e o destino de algumas boas peças fosse a
destruição. Por outro, sentir o que senti ao ver aquela imagem foi algo que
transcende a minha própria razão. Aquela representação era um paradigma de pobreza,
de desgraça; um espetáculo degradante. Nunca tinha presenciado alguma coisa no
género. Creio também que, para a Baixa e para a cidade, não foi um quadro
digno. Só gostava que visse como ficou a rua no fim do “assalto”. Parecia que
tinha passado por ali um tornado. Deveria ser criado um local próprio onde os
particulares pudessem depositar os seus excedentes e para que outros mais
necessitados, com outra dignidade e sem o estigma do remexer em lixo, ali
pudessem livremente recolher o que lhes interessasse.”
ROSTOS NOSSOS (DES)CONHECIDOS: A RAINHA DA NOSSA RUA
Há mais de dois anos que ando a persegui-la
pelas ruas do Centro histórico. Confesso aqui o assédio descarado que lhe movi.
Desde o cumprimento meloso com beijinho no dorso da mão até ao convite para um
café, nos vários encontros que ocorreram nas ruas da Baixa, tentei tudo para
que a Teresinha me desse um pouco de
atenção, uma réstia do seu tempo, para eu poder escrever alguma coisa sobre a
sua encantadora figura e a sua história de vida. Mas qual quê? Do alto dos seus
olhos negros, fixando-me, parecia dizer: “faz-te jornalista, homem, e depois
vem falar comigo! Não passo cartão a genéricos!”. É certo que educadamente,
quase em despacho sumário, lá saía a proclamação: “hoje não, que não tenho tempo! Quem sabe outro dia?!”. E eu
desesperava para conquistar a confiança da Teresinha.
Foi então que, num destes dias de sol a
espreitar pelas frinchas da chuva, a encontrei dentro da loja da Lena, na Rua
de Sargento-mor. E rapidamente, num silogismo prático e interesseiro, dei por
mim a pensar com os meus botões: eureka! Estou
salvo! É hoje! Vou pedir à Lena que mova a sua influência perante a minha diva
e personagem desta crónica. E foi o que aconteceu. A Lena falou e a
Teresinha imediatamente confiou. E contou. Obviamente que não vamos falar de
quantas primaveras já passaram na sua vida –porque os anjos são eternos. Tem os anos desde que nasceu até hoje. E desde
que trintou nunca mais lembrou. Vamos então ouvir a Dona Maria Teresa Pena:
“Nasci
na Bairrada, numa quinta. Era ainda uma menina quando vim para Coimbra. A
cidade dos estudantes é a minha segunda alma. É por ela que versejo: penso, começo a pensar, quando estou fora
da cidade e volto dá-me vontade de chorar! Estava a fazer o curso de
enfermagem quando conheci o amor da minha vida, o meu marido. Eu era muito
linda! Por ele interrompi a formação, casámos e fomos para Lourenço Marques -hoje
Maputo-, Moçambique. Ele era médico
militar. Com ele conheci toda a África Austral, a Ásia e a Europa.
Sou viúva e uma pessoa muito simples. Há certas coisas que não gosto.
Estou representada em fotografias pelo mundo inteiro. Juntamente com o meu
falecido esposo, estive em Macau. Fui a mais linda de Macau! Aqui pratiquei
Karaté e fui cinturão negro. Ai de quem se chegar a mim –e mostra uns
movimentos rápidos com as mãos. Eu era
muito linda! Até a Amália Rodrigues, que foi lá cantar, parou para me ver. Um
dia, lembro-me bem, ia na rua e chocaram dois carros por causa de mim. Eu era
muito linda! Um dia entrei num campo de futebol, com as duas minhas filhas pela
mão, e as bancadas levantaram-se para me ver. Eu era muito bonita! Queriam que
concorresse a um concurso de beleza mas, para além do meu homem ser muito
ciumento, eu nunca quis. Sempre fui uma excelente dançarina. Tudo parava quando
eu rodopiava na roda. Ficava tudo de pé, a olhar-me, como se eu fosse uma
princesa. Eu era muito linda! Em 1965 cantei o fado no Teatro Gil Vicente, em
Lourenço Marques. Estava a sala cheia quando cantarolei “eu vi a Amélia no arvoredo…”. Regressei a Coimbra por alturas do 25
de Abril de 1974. Eu era muito linda!!
Hoje,
qualquer homem me tem muito respeito. Os turistas pedem-me para tirar
fotografias. A minha imagem está em todo o lado. Estou representada na China,
nos Estados Unidos, no Brasil e no Japão. É demais!! Há dias, em frente à
Brasileira, ali na rua de cima, estiveram sete repórteres a fotografar-me. Tudo
com muito respeito! Fui rainha da Rua de Sargento-mor em 2011. As escadas do
Gato estavam cheias de gente para me ver. Todos bateram palmas. Tive lá na rua
um poster grande com a minha foto –você não viu? Agora as pessoas dizem-me que
sou a rainha de Coimbra inteira. Sou feliz! Respeito toda a gente, desde o
sem-abrigo ao mais alto na sociedade. Vivo só porque quero. Por opção! Sou
muito independente. À noite nunca saio. Não há ninguém que tenha alguma coisa a
apontar-me. Sou muito seletiva não dou confiança a ninguém –não gosto dessas
coisas! A Rua de Sargento-mor é o meu paraíso. Aqui está a minha família. Gosto
muito da Leninha! Se passar um dia sem cá vir, liga-me logo e sempre. O que é
que você está a escrever? Veja lá! Está a ouvir? Olhe que eu sou uma senhora de
muito respeito!”
A ÚLTIMA CRÓNICA DO MAMEDE
Conheci-o pela primeira vez no início da década de 1980,
quando me estabeleci por conta própria no Largo da Sé Velha, em Coimbra, com o
café com o mesmo nome do ancestral largo. Nessa altura, o Eduardo Mamede era
ainda um rapaz de vinte e poucos anos e também meu cliente diário.
O Mamede era um cronista de
excelência, sobretudo de História de Portugal e então sobre Coimbra sabia tudo,
ou, como observador atento, pouco lhe teria escapado. O nosso conhecimento
aproximou-se também porque eu, de vez em quando, querendo imitar analistas como
ele, mandava uns desabafos para a “Página
do Leitor”, do Diário de Coimbra
(DC). E algumas vezes, depois da publicação no jornal, de forma direta, sem
rodeios –ele falava o que tinha a falar sem pedir licença-, lá vinha o Eduardo,
com o DC na mão, retificar o meu português aprendido nos socalcos da existência:
“olhe que esta frase aqui está mal
construída. Deveria ter escrito desta maneira!”. E escrevia ao lado.
Durante treze anos que permaneci
no Café Sé Velha quase todos os dias trocávamos impressões. Não que fosse
fácil, porque o Mamede, com a sua costela monárquica, como se afirmava amiúde,
era uma pessoa difícil na aproximação. Na sua idiossincrasia, fazia lembrar um
fidalgo brasonado da monarquia. Sempre ereto, de cabeça levantada, no caminhar
da vida, não admitia réplica. Era senhor de uma profunda convicção que
incomodava, numa quase arrogância implícita, para os simplórios como eu.
Durante muitos anos escreveu para
o Diário de Coimbra onde, se a memória não me atraiçoa, chegou a ter uma coluna
semanal. Pelo que sei, colaborou em várias revistas sobre história e incluindo
heráldica. Sobre a cidade dos estudantes não teria havido nada que não deixasse
nota. Desde a guitarra de Coimbra ao fado, desde o Paço de Sub-Ripas passando pelo
Jardim Botânico, até à Casa de
Domingos Vandelli em Coimbra, pouco da monumentalidade conimbricense lhe
teria passado ao lado.
Curiosamente, como professor e aluno, desde há cerca de
dois anos, como seu discípulo, vim a
emparceirar com ele como colaborador n’O
Despertar –o mais antigo semanário da cidade.
Esta semana o jornal traz à
estampa a sua última crónica, como sempre assinada “Eduardo Proença-Mamede”. O título, “A CASA DA GERIA”, já denota passado e impregnação a saudade. O
Eduardo Mamede deixou-nos. Partiu sem avisar. Tal como a sua última narração,
este meu texto tem a presunção de o lembrar também como um excecional
historiador, que a cidade perdeu, e um excelente cronista que, creio, a direção
d’O Despertar não substituirá
facilmente.
À sua mãe e restante família,
nesta hora de luto e dor, os meus sentidos pêsames. Até um dia, Mamede.
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