quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

AS CIDADES LOW COST

(Imagem de Leonardo Braga Pinheiro)



 Foi ao ler hoje esta notícia do Jornal Público, em que “o histórico Cinema Londres, em Lisboa, vai transformar-se numa loja de produtos chineses”, que me senti instigado a escrever esta crónica.
Porque para tudo precisamos de definições, começo por conceituar a cidade. Sem entrar em grandes tiradas filosóficas, e indo pescar umas frases aqui à Wikipédia, diria que “uma cidade ou urbe é uma área urbanizada que se diferencia de vilas e outras entidades urbanas através de vários critérios, os quais incluem população densidade populacional ou estatuto legal, embora sua clara definição não seja precisa, sendo alvo de discussões diversas”. Continuando a erguer a cana de pescador neste mar cibernético da Internet, aqui, plagio que “Os mais antigos registos arqueológicos encontrados de ruínas de cidades remontam à Revolução Neolítica, por volta de 4.000 a 3.000 A. C.. A constituição das cidades na Antiguidade tinha por objetivo ser centro de comércio e/ou também como fortificações de guerra contra inimigos. (…) As cidades surgiram inicialmente como pequenas aldeias às margens de rios, e com o crescimento populacional e das atividades passaram a constituir cidades mais complexas. Os principais locais de surgimento das cidades foram ao longo dos vales dos rios Tigres e Eufrates, na Mesopotâmia; do Nilo, no Egito; do rio Indo, na Índia; do Yang-Tsé- Kiang e Hoang-HO na China; e do San Juan, na Meso-América. (…) No território europeu, a primeira civilização de destaque foi a grega, cujos registos das cidades-Estado remontam aos séculos VIII a VI a.C.. As cidades gregas eram centros comerciais, religiosos, políticos e artísticos, com autonomia organizacional em relação às demais. As cidades gregas mais conhecidas foram Atenas e Esparta, que durante séculos dominaram o comércio no Mar Egeu e em parte do Mediterrâneo, deixando também como importante legado aspectos filosóficos, políticos (democracia), jurídicos, militares e artísticos que até hoje são perceptíveis. Entretanto, o caso de maior notoriedade de uma cidade da Antiguidade é Roma. (…) Curiosamente, é a partir do declínio do Império Romano que se vê a perda de importância das cidades no ocidente europeu. (…) No final da Idade Média, com o renascimento comercial e urbano no interior do continente europeu, as cidades voltaram a se desenvolver – agora a partir dos burgos –, como centros comerciais e culturais, além de verem desenvolver o capitalismo industrial. (…) O advento da Revolução Industrial, somado à centralização da administração do Estado, deu impulso à urbanização de vastos espaços territoriais, levando à necessidade de criar políticas de planejamento e urbanização, visando sanar problemas habitacionais, sanitários e de deslocamento, e também como forma do Estado evitar e combater distúrbios sociais decorrentes da vida urbana contemporânea. O desenvolvimento verificado durante o capitalismo criou metrópoles e megalópoles, sendo as primeiras grandes cidades de importância nacional e regional, e as segundas, espaços de união de metrópoles. No ano 2000 metade da população mundial vivia em cidades, e a ONU projeta para o ano de 2050 a existência de dois terços de população urbana.”
Depois desta apresentação, aproveitando-me claramente do trabalho de Tales Pinto, e voltando ao jornal Público pela notícia de transformação do Cinema Londres em loja de produtos chineses, constatamos que as cidades, na sua natural evolução dinâmica, já pouco têm a ver com o passado ancestral e hoje menos ainda com o recente do ano 2000, de que escreve o autor. Falando de Coimbra, a urbe bipolarizou-se na saúde e no ensino universitário –embora neste sector perdesse notoriamente importância pela transversalidade da criação de novos pólos de ensino superior.
Nas últimas quatro décadas foi largando alguma indústria existente de peso e que davam emprego a milhares de pessoas, nomeadamente algumas fábricas de tecidos, de produtos alimentares, curtumes, metalo-mecânica, pedras e cantarias, de cerveja, carpintaria e construção de móveis, de Mosaicos e louças sanitárias e de quadros eléctricos. Sendo a cidade muito conhecida pelas suas faianças artísticas, progressivamente foi perdendo todas as pequenas unidades ligadas a barros e terracotas e, na actualidade, nem uma única subsiste. Paulatinamente, abandonando a produção e entrando na prestação de serviços, todos estes ex-operários fabris, pela necessidade, foram empurrados para o terciário. Não colocando outras premissas que contribuíram mas que não vou referir, é assim que nos últimos vinte anos assistimos à emergência de muitas mais lojas comerciais na cidade, como cogumelos a nascer em terreno rico em substâncias orgânicas de solos em decomposição.

II
Até à inauguração das primeiras duas grandes superfícies dentro da malha urbana da cidade, no Vale das Flores, a Makro e o continente, em 1993, a Baixa de Coimbra era o coração da urbe –e porque não dizer do concelho. Incluindo os citadinos nativos, era para esta zona que todo o distrito convergia. Em função da elevada procura, aqui havia todo o género de oferta comercial, entre venda e reparação, e prestação de serviços. Naquela, na recuperação de bens, existiam várias oficinas de arranjos de automóveis, duas de ferro forjado, de pequenas soldaduras em latoaria para recuperação de artigos, uma de reparação de guarda-chuvas e bonecas, de arranjo de artigos eléctricos, de máquinas registadoras, de colchões, de restauro de móveis, de restauro de objectos em metais preciosos, de serralharia mecânica, fundição de ferro e outros metais, alfaiatarias e modistas com arranjos em costura. Havia duas pequenas sucateiras, que recuperavam metais e vendiam os excedentes em estado razoável aos amantes das velharias escanzeladas. Com a Globalização, na obsessão do usar e deitar fora, praticamente desapareceram todas estas peculiares oficinas e estabelecimentos “sui generis”. Com a desvalorização infrene das coisas deixou de haver motivação para recuperar seja o que for –a título de curiosidade vejamos uma notícia do Diário de Coimbra, em 31 de Outubro de 1954 –data da inauguração da Ponte de Santa Clara-, sobre achados: “Na secretaria do Comando da Polícia de Segurança Pública, desta cidade, acham-se depositados e serão entregues a quem provar que lhes pertencem os achados seguintes: Um par de luvas de senhora; um caderno de papel de 35 linhas; uma saca de retalhos; uma caneta de tinta permanente; uma meia de vidro; uma agenda com fotografias; várias chaves, tampons e luvas desaparceiradas.”
Na venda, na oferta comercial, havia várias lojas de ferragens onde se encontrava tudo desde barras em ferro até ao mais singular parafuso. Havia vários armazéns de venda ao público de artigos alimentares onde se moía café e o odor arábico inundava as ruas em redor. Havia vários grandes armazéns grossistas de malhas. Havia um grande armazém de artigos escolares e outras livrarias com uma multiplicidade incomensurável de oferta aos particulares. Havia vários standes de automóveis novos e usados. Havia vários armazéns de venda de louças para o lar e para a indústria hoteleira. Havia várias lojas de artigos decorativos. Havia vários estabelecimentos de artigos para prática de desporto. Havia vários postos de venda de combustíveis.
Para cuidar dos mortos havia várias agências funerárias. Naturalmente que a oferta de sexo também estava bem servida. Para além de uma artéria emblemática, a Rua Direita, com vários cafés de ambiente duvidoso, proliferavam as pensões de queca rápida, com cheiros característicos a carnes sequiosas de amor breve e a mofo de alcova usada.
Praticamente do que se enumera aqui, na actualidade, pouco subsiste. Depois da grande proliferação de novas centralidades comerciais, que psicologicamente dividiu a comunidade entre um passado bafiento e um presente que não deixa história, buscando um presumível desenvolvimento que não se tinha e assente numa procura obsessiva por uma cidade imaginária, formatada, higiénica e sanitária, chegámos hoje a um resultado ambivalente, sem identificação, esvaziando-se da tradição –apesar da classificação de Património Universal concedido pela UNESCO-, e onde, provavelmente, será grande o sentimento de frustração e infelicidade com o resultado da soma de todas as premissas.


III
A título de curiosidade, para comparar e fazer reflectir porque está aqui muito de presciente, vou voltar novamente a uma citação recuada, neste caso do Boletim da Câmara Municipal de Coimbra, de 1 de Dezembro de 1985 e no mandato de Mendes Silva. Nas páginas centrais, com o título “A modernidade esperada e a tradição que permanece”, poderia ler-se o seguinte: “Coimbra é uma cidade cuja remota origem e importância de que foi disfrutada ao longo da história –com as marcas que cada período deixou a testemunhá-la- lhe conferem a sua pecularidade. (…) Mas se a antiguidade lhe confere um estatuto se especial, Coimbra nunca deixou de se expandir, conquistando o terceiro lugar entre as cidades portuguesas, não só pelo tamanho, mas também pela influência que teve. Sem desígnios adivinhatórios, não será difícil prever, tomando como ponto de partida as obras que estão em curso ou em projecto (ou, mesmo, prestes a entrar em funcionamento), que na próxima década a “fisionomia” urbana diferirá da actual. Será preciso, contudo, ter em atenção que, numa cidade com história e a tradição de Coimbra, qualquer projecto imponderado terá como consequência a alteração deste “status quo” que confere à cidade bi-milenária a sua beleza própria. (…) Capital natural da Região Centro, Coimbra dispõe de inúmeros serviços estatais (e não só) que acentuam a predominância terciária da urbe. Mas grande parte dos departamentos das diversas instituições encontram-se dispersos pela cidade, dificultando a operacionalidade das mesmas. Caso paradigmático é o dos Serviços Postais que, dentro em breve, estarão reunidos no Edifício da Avenida Fernão de Magalhães. (…) Qualquer ideia megalómana que necessite, para se poder implantar, de destruir o aspecto da Lusa-Atenas, terá de ser, de facto, abandonada, para que não se reedite a tristemente famosa extinção do velho “Quartier Latin” –bairro latino em Paris, junto ao Rio Sena e em torno da Universidade de Sorbonne- quando se instalou a “pomposa” cidade universitária –desaparecendo para sempre exemplares arquitectónicos da Renascença, casas setecentistas e a residência do poeta Eugénio de Castro."
Por este extracto, dá para ver que, desde essa época de 1985 até hoje, Coimbra não só perdeu a classificação de terceira cidade do país como foi desbaratando quase todas as direcções regionais de serviços públicos. A própria Baixa foi-se depauperando, esvaziando-se na habitação, na prestação de serviços e no comércio, que nos nossos dias é uma sombra do que foi.

IV

Tal como a transformação do Cinema Londres, em Lisboa, para uma loja de artigos chineses, Coimbra também tem o seu caso emblemático: os Marthas, na Praça do Comércio. Este antigo estabelecimento de artigos escolares, com 98 anos de existência, passou para uma loja chinesa em 2008.
Todas as lojas históricas na Baixa, que enriqueciam a procura, estão a desaparecer velozmente. Excluindo grandes cafés importantes, na última década foram a enterrar em campa rasa os ícones de uma memória comercial que só perdurará nos mais velhos como, por exemplo: as lojas da livraria Almedina, a livraria 115, as Galerias Coimbra, O Traje, o Saul Morgado, o Turíbio de Matos, a Sapataria Satélite, a Topal, a Sapataria Reis, a Casa Ramiro, a Arca, os Marthas, a Fetal, o Tito Cunha, O Infinito, a SapatariaCharles, a Casa Ruben, a Sacril, a Casa Bonjardim, a Chuteira, a Jezequel, a Materna, a perfumaria Pétala, a casa dos Irmãos Costa, etc,.
A própria habitação degradou-se assustadoramente, pelo deficiente poder económico dos pequenos proprietários, e hoje todo este universo de prédios, salvo raras excepções, está vazio de pessoas e prenhe de espíritos em rebelião. Os moradores que continuam cá são idosos e carenciados, fazendo companhia a uma classe comercial sem poder económico e onde as falências surgem a todo o momento.
Tentando ejectar-se vida artificialmente nesta área velha, recorreu-se ao arrendamento de quartos a estudantes mas esta solução é apenas de recurso, uma vez que os alunos universitários estrangeiros e nacionais não frequentam os estabelecimentos desta zona histórica. Após as 19h00 todo o Centro Histórico é um cemitério de vivos, que ninguém consolará, e de espíritos errantes que vagueiam por becos e ruelas.
Tudo, habitação e comércio, e todos, consumidores, estamos transformados em utilizadores “low cost”. Os novos estabelecimentos, que emergem nos lugares de outros que perduraram durante largas vintenas e vintenas de anos, numa adaptação aos novos tempos, estão embrenhados na mesma concepção de apenas sobreviverem o máximo possível vendendo barato: abrem hoje para encerrarem passados poucos meses mais endividados do que entraram.
O próprio consumidor, que somos todos, numa deriva sem igual, está transformado num sem-vergonha, onde ressalta um egoísmo selvagem, quer comprar qualidade a preço de saldo. Derrapou-se para um cliente tecnicamente bem informado sobre o que quer adquirir mas vazio de valores; uma espécie de máquina humana sem sentimentos de humanidade, que numa estudada frieza encara quem vende da mesma forma que, no passado, o abastado tratava o criado servilista. Ou seja, como um ser inferior, quase escravo, que sobrevivia amarrado às grilhetas da necessidade.
Não se sabe o que irão ser as cidades do futuro, mas dá para apreender que serão aglomerados de pessoas distantes entre si, sem os entrelaços relacionais que o comércio de rua e outras vivências facultavam. Estamos mais finos, mais informados, mas não estamos melhores. Vivemos no tempo do “low cost”. Ponto final e parágrafo.


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