(Imagem de Leonardo Braga Pinheiro)
Foi ao ler hoje esta notícia do Jornal Público, em que “o histórico Cinema Londres, em Lisboa, vai
transformar-se numa loja de produtos chineses”, que me senti instigado a
escrever esta crónica.
Porque para tudo precisamos de
definições, começo por conceituar a cidade.
Sem entrar em grandes tiradas filosóficas, e indo pescar umas frases aqui à
Wikipédia, diria que “uma cidade ou urbe é uma área
urbanizada que se diferencia de vilas e outras entidades urbanas através
de vários critérios, os quais incluem população densidade populacional
ou estatuto legal, embora sua clara definição não seja precisa, sendo alvo
de discussões diversas”. Continuando a erguer a cana de pescador neste
mar cibernético da Internet, aqui, plagio que “Os mais antigos registos
arqueológicos encontrados de ruínas de cidades remontam à Revolução
Neolítica, por volta de 4.000 a 3.000 A. C.. A constituição das cidades na
Antiguidade tinha por objetivo ser centro de comércio e/ou também como
fortificações de guerra contra inimigos. (…) As cidades surgiram inicialmente
como pequenas aldeias às margens de rios, e com o crescimento populacional e
das atividades passaram a constituir cidades mais complexas. Os principais
locais de surgimento das cidades foram ao longo dos vales dos rios Tigres e
Eufrates, na Mesopotâmia; do Nilo, no Egito; do rio Indo, na Índia; do
Yang-Tsé- Kiang e Hoang-HO na China; e do San Juan, na Meso-América. (…) No
território europeu, a primeira civilização de destaque foi a grega, cujos
registos das cidades-Estado remontam aos séculos VIII a VI a.C.. As cidades
gregas eram centros comerciais, religiosos, políticos e artísticos, com
autonomia organizacional em relação às demais. As cidades gregas mais conhecidas
foram Atenas e Esparta, que durante séculos dominaram o comércio no Mar Egeu e
em parte do Mediterrâneo, deixando também como importante legado aspectos
filosóficos, políticos (democracia), jurídicos, militares e artísticos que até
hoje são perceptíveis. Entretanto, o caso de maior notoriedade de uma cidade da
Antiguidade é Roma. (…) Curiosamente, é a partir do declínio do Império Romano
que se vê a perda de importância das cidades no ocidente europeu. (…) No final
da Idade Média, com o renascimento comercial e urbano no interior do continente
europeu, as cidades voltaram a se desenvolver – agora a partir dos burgos –,
como centros comerciais e culturais, além de verem desenvolver o capitalismo
industrial. (…) O advento da Revolução Industrial, somado à centralização da
administração do Estado, deu impulso à urbanização de vastos espaços
territoriais, levando à necessidade de criar políticas de planejamento e
urbanização, visando sanar problemas habitacionais, sanitários e de
deslocamento, e também como forma do Estado evitar e combater distúrbios
sociais decorrentes da vida urbana contemporânea. O desenvolvimento verificado
durante o capitalismo criou metrópoles e megalópoles, sendo as primeiras
grandes cidades de importância nacional e regional, e as segundas, espaços de
união de metrópoles. No ano 2000 metade da população mundial vivia em cidades,
e a ONU projeta para o ano de 2050 a existência de dois terços de população
urbana.”
Depois desta apresentação, aproveitando-me
claramente do trabalho de Tales Pinto, e voltando ao jornal Público pela
notícia de transformação do Cinema Londres em loja de produtos chineses,
constatamos que as cidades, na sua natural evolução dinâmica, já pouco têm a
ver com o passado ancestral e hoje menos ainda com o recente do ano 2000, de que
escreve o autor. Falando de Coimbra, a urbe bipolarizou-se na saúde e no ensino
universitário –embora neste sector perdesse notoriamente importância pela
transversalidade da criação de novos pólos de ensino superior.
Nas últimas quatro décadas foi
largando alguma indústria existente de peso e que davam emprego a milhares de
pessoas, nomeadamente algumas fábricas de tecidos, de produtos alimentares,
curtumes, metalo-mecânica, pedras e cantarias, de cerveja, carpintaria e
construção de móveis, de Mosaicos e louças sanitárias e de quadros eléctricos.
Sendo a cidade muito conhecida pelas suas faianças artísticas, progressivamente
foi perdendo todas as pequenas unidades ligadas a barros e terracotas e, na
actualidade, nem uma única subsiste. Paulatinamente, abandonando a produção e
entrando na prestação de serviços, todos estes ex-operários fabris, pela
necessidade, foram empurrados para o terciário. Não colocando outras premissas
que contribuíram mas que não vou referir, é assim que nos últimos vinte anos
assistimos à emergência de muitas mais lojas comerciais na cidade, como
cogumelos a nascer em terreno rico em substâncias orgânicas de solos em
decomposição.
II
Até à inauguração das primeiras duas grandes
superfícies dentro da malha urbana da cidade, no Vale das Flores, a Makro e o
continente, em 1993, a Baixa de Coimbra era o coração da urbe –e porque não
dizer do concelho. Incluindo os citadinos nativos, era para esta zona que todo
o distrito convergia. Em função da elevada procura, aqui havia todo o género de
oferta comercial, entre venda e reparação, e prestação de serviços. Naquela, na
recuperação de bens, existiam várias oficinas de arranjos de automóveis, duas
de ferro forjado, de pequenas soldaduras em latoaria para recuperação de
artigos, uma de reparação de guarda-chuvas e bonecas, de arranjo de artigos
eléctricos, de máquinas registadoras, de colchões, de restauro de móveis, de
restauro de objectos em metais preciosos, de serralharia mecânica, fundição de
ferro e outros metais, alfaiatarias e modistas com arranjos em costura. Havia duas
pequenas sucateiras, que recuperavam metais e vendiam os excedentes em estado
razoável aos amantes das velharias escanzeladas. Com a Globalização, na
obsessão do usar e deitar fora, praticamente desapareceram todas estas
peculiares oficinas e estabelecimentos “sui
generis”. Com a desvalorização infrene das coisas deixou de haver motivação
para recuperar seja o que for –a título de curiosidade vejamos uma notícia do
Diário de Coimbra, em 31 de Outubro de 1954 –data da inauguração da Ponte de
Santa Clara-, sobre achados: “Na
secretaria do Comando da Polícia de Segurança Pública, desta cidade, acham-se
depositados e serão entregues a quem provar que lhes pertencem os achados
seguintes: Um par de luvas de senhora; um caderno de papel de 35 linhas; uma
saca de retalhos; uma caneta de tinta permanente; uma meia de vidro; uma agenda
com fotografias; várias chaves, tampons e luvas desaparceiradas.”
Na venda, na oferta comercial, havia várias
lojas de ferragens onde se encontrava tudo desde barras em ferro até ao mais
singular parafuso. Havia vários armazéns de venda ao público de artigos
alimentares onde se moía café e o odor arábico inundava as ruas em redor. Havia
vários grandes armazéns grossistas de malhas. Havia um grande armazém de
artigos escolares e outras livrarias com uma multiplicidade incomensurável de
oferta aos particulares. Havia vários standes de automóveis novos e usados.
Havia vários armazéns de venda de louças para o lar e para a indústria
hoteleira. Havia várias lojas de artigos decorativos. Havia vários estabelecimentos
de artigos para prática de desporto. Havia vários postos de venda de
combustíveis.
Para cuidar dos mortos havia várias agências
funerárias. Naturalmente que a oferta de sexo também estava bem servida. Para além
de uma artéria emblemática, a Rua Direita, com vários cafés de ambiente
duvidoso, proliferavam as pensões de
queca rápida, com cheiros característicos a carnes sequiosas de amor breve
e a mofo de alcova usada.
Praticamente do que se enumera
aqui, na actualidade, pouco subsiste. Depois da grande proliferação de novas
centralidades comerciais, que psicologicamente dividiu a comunidade entre um
passado bafiento e um presente que não deixa história, buscando um presumível
desenvolvimento que não se tinha e assente numa procura obsessiva por uma
cidade imaginária, formatada, higiénica e sanitária, chegámos hoje a um
resultado ambivalente, sem identificação, esvaziando-se da tradição –apesar da classificação
de Património Universal concedido pela UNESCO-, e onde, provavelmente, será
grande o sentimento de frustração e infelicidade com o resultado da soma de
todas as premissas.
III
A título de curiosidade, para comparar e fazer
reflectir porque está aqui muito de presciente, vou voltar novamente a uma
citação recuada, neste caso do Boletim da
Câmara Municipal de Coimbra, de 1 de Dezembro de 1985 e no mandato de
Mendes Silva. Nas páginas centrais, com o título “A modernidade esperada e a
tradição que permanece”, poderia ler-se o seguinte: “Coimbra
é uma cidade cuja remota origem e importância de que foi disfrutada ao longo da
história –com as marcas que cada período deixou a testemunhá-la- lhe conferem a
sua pecularidade. (…) Mas se a antiguidade lhe confere um estatuto se especial,
Coimbra nunca deixou de se expandir, conquistando o terceiro lugar entre as
cidades portuguesas, não só pelo tamanho, mas também pela influência que teve.
Sem desígnios adivinhatórios, não será difícil prever, tomando como ponto de
partida as obras que estão em curso ou em projecto (ou, mesmo, prestes a entrar
em funcionamento), que na próxima década a “fisionomia” urbana diferirá da
actual. Será preciso, contudo, ter em atenção que, numa cidade com história e a
tradição de Coimbra, qualquer projecto imponderado terá como consequência a
alteração deste “status quo” que confere à cidade bi-milenária a sua beleza
própria. (…) Capital natural da Região Centro, Coimbra dispõe de inúmeros
serviços estatais (e não só) que acentuam a predominância terciária da urbe.
Mas grande parte dos departamentos das diversas instituições encontram-se
dispersos pela cidade, dificultando a operacionalidade das mesmas. Caso
paradigmático é o dos Serviços Postais que, dentro em breve, estarão reunidos
no Edifício da Avenida Fernão de Magalhães. (…) Qualquer ideia megalómana que
necessite, para se poder implantar, de destruir o aspecto da Lusa-Atenas, terá
de ser, de facto, abandonada, para que não se reedite a tristemente famosa
extinção do velho “Quartier Latin” –bairro
latino em Paris, junto ao Rio Sena e em torno da Universidade de Sorbonne- quando se instalou a “pomposa” cidade
universitária –desaparecendo para sempre exemplares arquitectónicos da
Renascença, casas setecentistas e a residência do poeta Eugénio de Castro."
Por este extracto, dá para ver que,
desde essa época de 1985 até hoje, Coimbra não só perdeu a classificação de terceira cidade do país como foi desbaratando
quase todas as direcções regionais de serviços públicos. A própria Baixa foi-se
depauperando, esvaziando-se na habitação, na prestação de serviços e no
comércio, que nos nossos dias é uma sombra do que foi.
IV
Tal como a transformação do Cinema Londres, em
Lisboa, para uma loja de artigos chineses, Coimbra também tem o seu caso
emblemático: os Marthas, na Praça do Comércio. Este antigo estabelecimento de
artigos escolares, com 98 anos de existência, passou para uma loja chinesa em 2008.
Todas as lojas históricas na Baixa, que
enriqueciam a procura, estão a desaparecer velozmente. Excluindo grandes cafés
importantes, na última década foram a enterrar em campa rasa os ícones de uma memória
comercial que só perdurará nos mais velhos como, por exemplo: as lojas da
livraria Almedina, a livraria 115, as Galerias Coimbra, O Traje, o Saul Morgado, o Turíbio de Matos, a Sapataria Satélite, a Topal, a Sapataria Reis, a
Casa Ramiro, a Arca, os Marthas, a Fetal, o Tito Cunha, O Infinito, a SapatariaCharles, a Casa Ruben, a Sacril, a Casa Bonjardim, a Chuteira, a Jezequel, a
Materna, a perfumaria Pétala, a casa dos Irmãos Costa, etc,.
A própria habitação degradou-se assustadoramente,
pelo deficiente poder económico dos pequenos proprietários, e hoje todo este
universo de prédios, salvo raras excepções, está vazio de pessoas e prenhe de
espíritos em rebelião. Os moradores que continuam cá são idosos e carenciados,
fazendo companhia a uma classe comercial sem poder económico e onde as
falências surgem a todo o momento.
Tentando ejectar-se vida artificialmente nesta área velha,
recorreu-se ao arrendamento de quartos a estudantes mas esta solução é apenas
de recurso, uma vez que os alunos universitários estrangeiros e nacionais não
frequentam os estabelecimentos desta zona histórica. Após as 19h00 todo o
Centro Histórico é um cemitério de vivos, que ninguém consolará, e de espíritos
errantes que vagueiam por becos e ruelas.
Tudo, habitação e comércio, e todos,
consumidores, estamos transformados em utilizadores “low cost”. Os novos estabelecimentos, que emergem nos lugares de
outros que perduraram durante largas vintenas e vintenas de anos, numa adaptação
aos novos tempos, estão embrenhados na mesma concepção de apenas sobreviverem o
máximo possível vendendo barato: abrem hoje para encerrarem passados poucos
meses mais endividados do que entraram.
O próprio consumidor, que somos todos, numa
deriva sem igual, está transformado num sem-vergonha, onde ressalta um egoísmo
selvagem, quer comprar qualidade a preço de saldo. Derrapou-se para um cliente
tecnicamente bem informado sobre o que quer adquirir mas vazio de valores; uma
espécie de máquina humana sem sentimentos de humanidade, que numa estudada
frieza encara quem vende da mesma forma que, no passado, o abastado tratava o
criado servilista. Ou seja, como um ser inferior, quase escravo, que sobrevivia
amarrado às grilhetas da necessidade.
Não se sabe o que irão ser as cidades do
futuro, mas dá para apreender que serão aglomerados de pessoas distantes entre
si, sem os entrelaços relacionais que o comércio de rua e outras vivências facultavam.
Estamos mais finos, mais informados, mas não estamos melhores. Vivemos no tempo
do “low cost”. Ponto final e
parágrafo.
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