(Imagem de Leonardo Braga Pinheiro)
Foi notícia de caixa alta ontem no Diário as Beiras: “Museu Académico recupera objectos furtados e suspende funcionário
suspeito”. No caderno interior, na página 3, em desenvolvimento, poderia
ler-se: “Um funcionário do Museu
Académico, em Coimbra, terá furtado diversos objectos naquele espaço. Os crimes
remontam ao verão passado e só agora as autoridades estão a recuperar algumas
dessas peças museológicas. (…) Helena Freitas adianta que tomou conhecimento
dos furtos no “verão passado” e desde aí as autoridades têm estado a investigar
na tentativa de encontrar todas as peças furtadas no museu. (…) “É uma situação
desagradável”, disse, indicando que “o valor das peças é relativo” e
enfatizando “mais o valor afetivo e histórico”. Ao que o DIÁRIO AS BEIRAS
apurou, alguns dos objectos furtados foram recuperados na passada sexta-feira
pelas autoridades quando estes estavam prestes a serem vendidos num antiquário
da cidade de Coimbra.”
Quando li a notícia, ontem, não sei bem
explicar por quê mas algo, assim como um sexto sentido, me dizia que as coisas
não foram bem assim. Antes de prosseguir, e como ressalva, eu também vendo
velharias e antiguidades. Ao ler a informação sumária sobre o antiquário, uma
vez que sou do ramo, senti-me incomodado. É que, do texto, uma pessoa apreendia
facilmente que ali havia dois vilões, o suspeito e o comerciante que adquiriu
os bens. Como é que os adquiriu? Foi pela porta esconsa da clandestinidade?
Cumpriu os requisitos legais? É que nenhuma resposta se extrai do texto. Antes
pelo contrário. Num tempo em que se toma a árvore pela floresta, numa época em
que a sociedade vive mergulhada no legalismo onde desaguam todas as frustrações
individuais e, numa avaliação iníqua sem o mínimo de preocupação pela verdade e
defesa do bom nome, se procede como no Coliseu Romano, há dois milhares de
anos. Em metáfora, alguém foi apanhado na curva da estrada, onde já ocorreram
tantos assaltos, na noite escura com um capuz na cabeça? “Condene-se o gatuno à pena máxima!”, diz o povo, em molhe, no meio
de uma imprecação. Uma criança pergunta ao pai: “e se não for este homem o salteador? E se ocorreram uma série de
coincidências, que aos olhos cegos de um justicialismo feroz que não quer ver,
vamos deixar passar a procissão?”. Responde o progenitor: “cala-te! Sabes lá tu de alguma coisa,
fedelho? Deixa essas especulações para os adultos!”. E o homem tomado como
criminoso no lugar e na hora errados, se calhar inocente, inculpado de um facto
de que nada tem a ver, no meio de um corredor de polícias, segue agrilhoado,
intimidado, vexado e sem poder evitar levar um sopapo de um espectador mais
afoito e acometido pela heroicidade do ódio.
Encerrei o estaminé e fui para a rua. Não
posso deixar-me ficar apenas pelos pensamentos esconsos e furtuitos. Tenho de
ir saber o que se passou com o furto do Museu Académico. E até é muito fácil, afinal
na cidade até se contam pelos dedos os vendedores de antiguidades. Falei com
um, com outro e mais outro. E, eureka, descobri! É o meu amigo Idalécio –nome
truncado porque ele só aceitou falar se a sua identidade não fosse divulgada.
Está nervoso. Anda de trás para a frente, como se tivesse ingerido, de uma vez
só, três latas energéticas de Red Bull. Calma, Idalécio! Tento contemporizar no
meu ar de pacificador das moitas agrestes. Conta lá o que se passou:
“Estou chateado à bruta, Luís! Ainda bem que
apareces e me escutas; assim sempre serve para eu desabafar e não ter mais logo
que embirrar com a patroa, lá em casa. Quando li a notícia no Diário as Beiras
até as minhas partes suspensas iam indo ao chão. Isto não foi nada como se
conta na notícia do diário. Como sabes sou comerciante há várias décadas e já
não embarco no canto do cisne. Ou seja, não compro artigos a qualquer pessoa
nem a qualquer preço. Se alguém se me dirigir para vender, miro de alto a baixo
o comprador e, como máquina fotográfica polaroid, capto logo ali a primeira
imagem de impressão rápida. A seguir, faço as tradicionais perguntas “como
obteve as peças? De onde vieram”, para tentar um diagnóstico rápido e para não
cair no conto da carochinha –como sabes tão bem como eu, todos procuramos
salvar-nos. Não termos problemas com ninguém, e muito menos com a polícia. O
nosso nome limpo vale por todos os esforços. Isto para te dizer de que não me
julgo santo. Nada disso! Sem demagogias, julgando-me melhor do que qualquer um,
cumpro o que a lei prescreve e tento andar de cabeça erguida. Nada de
santidades no meu procedimento.
Mas vou então ao caso em concreto. Em 22 de Fevereiro do ano passado,
de 2013 portanto, entrou-me pela loja dentro um fulano, que conheço há mais de
três décadas, para me vender duas peças antigas em mau estado. Sabia que era
filho de famílias com posses e que, sem vislumbrar o serviço em que se ocupava,
trabalhava na Universidade. À pergunta tradicional de onde vieram, respondeu
que eram de família. Eu comprei.
No dia 5 de Março, um mês depois da primeira transacção, trouxe-me mais
duas peças, também velhas. Respondeu o mesmo: “é de família!”. Eu comprei.
No dia 8 de Março apareceu com mais duas velharias indiscriminadas. Eu
comprei.
No dia 11 de Março voltou com mais quatro unidades sem grande valor transacionável.
Eu comprei.
No dia 18 de Março vendeu dois pratos em louça, um deles com o logótipo
da Universidade. Eu comprei.
No dia 22 de Março voltou com um prato, igual ao anterior do logótipo
da Universidade. Foi aí que comecei a duvidar da proveniência. Mesmo assim
adquiri-o. Mas, com a pulga atrás da orelha, questionei-o directamente acerca
do seu local de trabalho. Ele respondeu: “trabalho
no Museu Académico!”. Suspeitei imediatamente que ali havia marosca e ia
sobrar para mim. Voltei a interrogar como é que os pratos lhe vieram parar às
mãos e ele respondeu: “sabes, faço horas
extraordinárias e como não há pilim para me pagar deram-me os pratos. Ó pá, não
me digas que estás a desconfiar de mim?! Conheces-me há mais de 30 anos!”.
Torcendo o nariz, disse-lhe na cara que não acreditava nesta história, mas
enfim!
Mal ele virou costas enviei um e-mail à senhora vice-reitora, Helena
Freitas, a contar o que se estava a passar, que suspeitava que o sujeito andava
a desviar acervo do museu. Que investigasse que, da minha parte comprometia-me
a guardar todas as peças adquiridas até se chegar a uma conclusão.
Na semana seguinte, tal como fiz com as peças anteriores e como a lei obriga,
enviei o relatório de compras para a Polícia Judiciária (PJ) e referente ao
movimento da semana anterior. No mapa remetido à PJ seguiu a nota de que tinha
contactado a senhora vice-reitora para que indagasse da possibilidade de
estarem a ser desviadas peças do museu.
Por e-mail, no dia seguinte, respondeu-me a senhora de que se iria
desencadear um processo de averiguações. Mais tarde, creio, informou-me de que tudo
indicava ser verdade.
Passados dias, talvez um mês, não sei ao certo, recebi um telefonema de
uma senhora jurista da Universidade de Coimbra a convocar-me para ir prestar
declarações ao seu departamento com vista ao apuramento de factos alusivos ao
Museu. Tive de explicar à senhora manuseadora de leis que nem ela nem a
Universidade tinham legitimidade para me convocar. Só as polícias, o Ministério
Público, ou os tribunais podem intimar cidadãos para prestar declarações.
Embora contrariada lá aceitou e passados não sei mais quantos dias lá vieram à
minha tenda. Ouviram-me, fotografaram as peças e, na paz dos anjos, passou
um, três, seis meses, e fiquei à espera de mais desenvolvimentos. Nunca mais me
disseram nada. Até este mês de janeiro, quando recebi um ofício da PSP para
prestar declarações no dia 15. Ou seja, este processo, não se sabe por alma de
quem, arrastou-se durante 9 meses sem que houvesse uma palavra para mim. Os
artigos estiveram sempre à minha guarda mas sem o correspondente auto de
apreensão –como é normal nestes casos similares.
Foi portanto com algum desgosto e desassossego que li no Diário as
Beiras que “ alguns dos objectos furtados foram recuperados na passada
sexta-feira pelas autoridades quando estes estavam prestes a serem vendidos num
antiquário da cidade de Coimbra.”. Com a sonegação da realidade, isto é um
falsear completo sobre realmente o que aconteceu. Não sei se me entendes, Luís,
não procuro publicidade para o meu acto. Quero apenas a reposição da verdade. É
que sem se contar tudo como foi, para quem lê, parece que os antiquários da
cidade são uns ladrões. É preciso mostrar as coisas tal como elas são. Fui
claro, Luís? Obrigado por me escutares!”
Sem comentários:
Enviar um comentário