Depois de uma pausa para um café e um bolinho de coco no Mui Chocolate, na Rua da Gala, tão saborosos que até nos deixou
assarapantados, vou então prosseguir a minha conversa com o nosso arguto e carismático “Cidadão José
Dias”, como se apresenta oficialmente à comunidade coimbrã. Para me poupar,
e não vá eu cometer umas calinadas, quem vai desfiar o rol da sua vida, na
primeira pessoa, é o próprio. Fala “Cidadão”:
“Lá no teu boteco, contava eu que, em 1965, entrei para o curso de
Engenharia Electrotécnica, na Universidade do Porto. Disse-te também que estes
cursos estavam alinhados na célebre alínea F –inicial de Fadista, como deves
calcular- e que era para onde iam parar todos os futuros Enstein’s –a propósito,
Luisinho, sabias que este mais famoso físico teórico alemão foi um grande
cábula nos estudos liceais? Não sabias? Pois! É para veres que a teoria da relatividade,
desenvolvida por ele, já era antes de o ser.
Prosseguindo, como te disse anteriormente, o meu pai era dirigente da
Acção Católica, Rural e Operária. Como era natural, também tive formação religiosa,
e era também praticante apostólico-romano. Disse-te também que desde o liceu
que era dirigente da JOC, Juventude Operária Católica –claro que os meus pais sabiam. Então, na universidade acontecia uma coisa interessante: eu era o
único católico no meio de comunistas –talvez por isso, creio, nunca fui convidado
para integrar o partido. Mas o cerco ao meu segredo no seio da família começou a
apertar-se. Apesar de não pertencer ao Partido Comunista comecei a receber o
Avante, o jornal da foice e martelo. Ora o meu pai, que já deveria andar
desconfiado que o filho mais velho era a ovelha negra da prole, foi chamado
pelo director da Faculdade, Jaime Rios de Sousa, e confrontado com a verdade
nua e crua: o seu filho-varão andava no meio de comunistas. Imagino que, dito assim
de chofre, teria sido um choque. Sei lá quantas vezes o meu progenitor teria
feito o sinal da cruz. A partir da verdade descoberta, lá em casa, começou o
confronto directo e a intimação: “ou mudas de amigos ou mudas de casa!”.
Em 1968 vim para Coimbra. Como era dirigente da Associação Académica e católico,
fui acolhido sobre o manto do CADC, Centro Académico da Democracia Cristã, e
fui morar para a Rua Antero de Quental, no 83 e em frente ao Quartel General.
Vivi intensamente a crise académica de 1969 e em 1970, na pós-crise, fui
prevenido pela vice-reitora, Helena da Rocha Pereira, de que a PIDE andava à minha
procura. Agarrei na trouxa, fui para Lisboa e matriculei-me no Instituto
Superior Técnico, em Engenharia Civil. Aqui passei a integrar o Movimento
Católico Progressista. Em 1970, no escritório de Jorge Sampaio, conjuntamente
com outros camaradas, fiz parte da criação embrionária do MES –embora,
contrariamente à verdade, se afirme que este movimento de militantes do
catolicismo progressista só nasceu depois da Revolução dos Cravos. O tempo foi
passando e comecei a trabalhar no Ministério da Educação. Em 1973 a PIDE
prendeu alguns membros do MES. Um deles, sobre tortura, confessou que o Dias
(eu) era o responsável pela distribuição da propaganda e a Polícia
Internacional e Defesa do Estado tenta caçar-me. Entrei na clandestinidade e
passei a não permanecer muito tempo no mesmo sítio, entre Braga, Porto, Coimbra
e Lisboa, e até ao 25 de Abril de 1974. Reunia na clandestinidade com militares
como Melo Antunes. Foram eles que, na iminência do golpe militar correr mal, me
recomendaram que saísse do país. Fui a salto para Espanha, enquanto a minha
mulher foi a Bruxelas arranjar um passaporte falso. Já com o documento, fui
para Genebra, onde estavam à minha espera Medeiros Ferreira, o António Barreto
e outros, e pedi asilo político às autoridades suíças. Como, felizmente, correu
bem a intentona militar, regressei a Portugal. Fui funcionário e dirigente do MES
até 1977.
Em 1978 retornei a Braga e fui trabalhar para o Sindicato das
Costureiras e Alfaiates –como curiosidade, tinha 12 mil associados, onde só um
milhar eram homens filiados- exercendo a função de técnico sindical –fazia formação
nas empresas para delegados sindicais. Nesta cidade fui dirigente de vários
movimentos cívicos. Em 1982, na cidade dos arcebispos, fui para funcionário da
Agência Abreu como técnico de turismo. Em 1996 voltei a Coimbra e fui trabalhar
para o INATEL. Para além de técnico de turismo na ex-FNAT –Fundação Nacional
para a Alegria no Trabalho, de 1935 a 1974-, em programas para seniores, fui
dirigente da Organização Mundial de Turismo Social. Na cidade dos estudantes
integrei vários movimentos cívicos. Na comemoração do 25 de Abril de 2004,
juntamente com António Arnaut, Gomes Canotilho, Almeida Santos e outros, fui
agraciado com a Ordem da Liberdade pelo então Presidente da República, Jorge
Sampaio. Neste mesmo ano fui convidado para seu assessor político. No final do seu
mandato, em 2006, fui condecorado com a comenda da Ordem do Infante D. Henrique
–a mesma distinção que foi concedida a Ronaldo, o C7, estás a ver? Com duas
diferenças, vivo com uma pensão de pouco mais de mil euros e a minha Irina
quando olha para mim já só vê um homem cansado. Não achas que já chega,
Luisinho? Ai, é verdade, queres que te conte por que comecei a juntar “Cidadão”
ao meu nome? Eu conto. Sempre que, em Coimbra, entrava numa livraria, porque me
conheciam ou me apresentava como José Dias, era logo tratado por Doutor José
Dias. Outras vezes por professor. Tanto fazia eu alertar que não era licenciado
como não. Então, por causa das confusões, passei a assinar “Cidadão José Dias”. Queres saber também para onde vou? Continuarei a lutar por uma sociedade mais justa e equilibrada. Vai ser assim até não poder mais. Estás a agradecer-me? Por gentileza, meu bom amigo! Foi um prazer!” –e leva
os dois dedos, em gancho, ao boné.
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