Foi há cerca de oito anos quando mais repetidamente nos passámos a cruzar nestas ruas estreitas da Baixa. Depois, em 2008, a editora
Edições Afrontamento tinha dado ao
prelo o livro da sua vida: “Memórias do Cidadão
José Dias”. Tinha já lido algures que fora condecorado com a Ordem da Liberdade, uma
comenda honorífica concedida a quem se distingue por serviços relevantes na
vida portuguesa e em prol da dignificação do homem e à causa da Liberdade, e outras condecorações. Sobre o pouco que sabia a seu respeito e sobretudo sustentado
na imprensa, imaginava-o um homem alto, erecto, em jeito de torre de marfim,
garboso, todo apessoado e embrulhado numa máscara social de sorrisos
distribuídos à esquerda e à direita.
Ora a pessoa que diariamente calcorreava as
pedras da calçada em passo ligeiro e se confundia com os outros pedestres não
tinha nada a ver com o retrato por mim imaginado. Numa absoluta contradição e no
paradigma do português médio, era baixo, com um metro e sessenta e poucos, com
um rosto fino, onde se salientavam dois olhos pequeninos, sagazes e
perscrutadores, de íris azulada e emoldurados por uns óculos de armação
simples. Na cabeça, provavelmente para disfarçar uma testa larga e alta que precocemente
começou a ser abandonada pelos cabelos, uma tradicional boina portuguesa, ou
boné, de pala sobreposta. Perante esta decomposição da pré-formatada imagem, dei
por mim a pensar que, afinal, Deus pode perfeitamente estar encorpado no homem
mais comum que se possa imaginar.
Até que, nestes anos mais chegados, nos
começámos a encontrar em debates políticos multipartidários sobre a cidade e
acabámos a conhecer-nos melhor. Reparei que começou a assinar os convites para
as suas iniciativas como “Cidadão José
Dias”. Porquê? Sei lá! Não faço a mínima ideia! Recentemente esteve por
detrás da criação, foi a génese, do movimento
Cidadãos por Coimbra. Senhor de uma amabilidade indescritível no trato, não
é difícil gostar do “Cidadão José Dias”,
como se auto-proclama –das razões falaremos lá mais para a frente. Para quem
esteve presente no Auditório da Reitoria –e se não esteve viu nos jornais e televisão-, há
duas semanas realizou e foi interventor na sessão Cívica “Em Defesa da Constituição, da Democracia e do Estado Social”. Numa
mesa de oradores de excelência, de peixe
graúdo como sói dizer-se, onde constavam, entre outros, desde António
Arnault e Manuel Alegre até Catarina Martins, apercebi-me do sorriso de nervoso miudinho do Dias. Sabendo todos nós que
Coimbra, salvo raríssimas excepções à norma, quase nunca dá bola -no sentido literal de passar confiança e numa descarada
discriminação- e escorraça pessoas
sem canudo, ali naquele painel do anfiteatro universitário, dei por mim a classificar
aquele homem simples e não licenciado, sonhador, guerreiro e defensor de uma
sociedade melhor, como um cordeiro entre os lobos. Daí, pela sua
coragem em tentar partir esta cortina de vidro que divide a sociedade coimbrinha numa descarada bipolaridade em
eruditos e plebeus, eu ter pensado em entrevistar o nosso mais extraordinário Cidadão. E nada melhor do que ser o
próprio a contar. De onde vens? Onde
estás? Para onde vais? Fala, Cidadão “Zé”
Dias:
“Nasci em Braga, no Minho, por alturas das vindimas, em 1948. A minha querida mãe era da Póvoa do Lanhoso, terra da Maria da Fonte –sabes quem foi esta sublevada, não sabes, Luisinho?
Foi a mulher que, em 1846, chefiou a revolta popular contra várias alterações
fiscais e essencialmente sobre a proibição de realizar enterros dentro das
igrejas. Sou filho, mais velho de um rancho de oito, de pai funcionário público
e mãe telefonista dos CTT. Família modesta e com tudo de bom. Como era normal à
época por ser funcionário do Estado, o meu progenitor era filiado na União
Nacional –e dirigente da Acção Católica, Rural e Operária.
Em 1952 fomos viver para o Porto e por lá, na Cidade Invicta, comecei a
minha formação humana, política e académica. Com 15 anos, em 1963, estava no
último ano do liceu, fui convidado para ser dirigente da Juventude Operária
Católica (JOC). Em 1965 entrei na Universidade do Porto, no curso de
Engenharia Electrotécnica, na alínea F. Sabes o que era esta alínea, Luisinho?
Já vi que não. Vou-te contar. A alínea F era a rubrica onde desaguavam todos os
maus alunos. Assim uma espécie de vazadouro, a posta-restante do ensino. Estás
a ver? –olha lá, antes de continuarmos esta conversa, e se fôssemos beber um
café? Sugeres algum local? Não? Então vamos à “Mui Chocolate”, na Rua da Gala.
Vamos lá! (leva dois dedos em gancho ao boné). Por gentileza, meu bom amigo! Faz favor! E cede-me a passagem.
(Em actualização. Aguarde, sem ansiedade, que o final desta história virá)
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