segunda-feira, 4 de novembro de 2013

A SOCIEDADE DO MEDO




 Conta hoje o Jornal de Notícias que, em virtude do comportamento agressivo de um aluno de seis anos, uma escola em Mangualde foi obrigada a suspender as aulas.
Segundo o jornal, “Estão a enterrar o meu filho. Ele é hiperactivo e está a ser medicado. Em casa porta-se bem e só na escola é que se revolta. Não sabem lidar com ele” –responde a mãe.
Por parte da escola, “ao facto de aquele estabelecimento de ensino acusar o seu filho de comportamentos agressivos, que colocarão em risco a integridade física de professores, funcionários e alunos. Os frequentes ataques de fúria do menino já deixaram marcas físicas nos docentes, além dos prejuízos materiais que tem vindo a causar, sendo que as queixas por parte dos encarregados de educação são mais do que muitas.”
“A psicóloga Paula Fongue, ouvida pelo mesmo jornal, indica que “a criança está em perigo e a sofrer”, pelo que “não deve ser isolada, mesmo que se trate de um caso de indisciplina”.
Nós pais da geração de meados do século XX, ao lermos isto, num primeiro momento somos tomados de indignação e apetece-nos dizer: “ai que valentes palmadas naquele rabo o miúdo precisa!”. Mas será assim, de forma tão simplista e linear, que se resolve este problema, que, como se sabe, nem é tão isolado, único, e recente como parece? É apenas mais um drama vivido no triângulo pais, filhos, comunidade nos últimos 35 anos.
Vou começar por contar a história de um meu amigo chegado. Vamos ouvi-lo: “nasci na década de 1950, em uma aldeia do interior. Os meus pais eram muito pobres –material e espiritualmente. Passei uma infância muito difícil, dividida entre a miséria e o sonho de um dia partir para longe. Nunca recebi um único brinquedo dos meus progenitores. Que me lembre, um abraço ou um beijo a mesma coisa. A única formação intelectual que recebi deles foram os quatro anos de escola obrigatória. Mal acabei comecei a trabalhar. Desde muito cedo contei para mim que, um dia, quando tivesse constituído família e viessem os herdeiros faria tudo para lhes proporcionar uma vida melhor. Quando casei, com cerca de 20 anos para fugir ao jugo do meu pai e ter a minha própria vida, sonhava todas as noites em estabelecer-me por conta própria e poder ganhar muito dinheiro para lhes poder proporcionar um bem-estar mínimo. Vieram os filhos e com 25 anos estabeleci-me sem dinheiro próprio, porque não tinha, e com recurso a empréstimos particulares. Durante vários anos trabalhei noite e dia, a dormir quatro e cinco horas. Praticamente só ia a casa dormir. Os meus filhos cresciam praticamente sem conviver com eles. Ia apenas apanhá-los à escola e transportá-los a casa. Sempre que havia um acontecimento importante nas suas vidas, passando por cima das minhas preocupações, eu estava lá. Quando havia uma possibilidade de estarmos juntos eu levava-os à desaparecida loja de brinquedos A Joaninha, que estava instalada em frente à Câmara Municipal de Coimbra. O então dono da loja, o senhor Monteiro, até já os conhecia pelo nome mal os avistava à porta. Estávamos na década de 1980, estavam a surgir em grande força as marcas no vestuário. Para que os meus filhos não se sentissem discriminados na escola eu tinha sempre o cuidado de lhes comprar roupas de marca –não deixa de ser curioso, pelo facto de eu ter andado descalço e, no mínimo, jamais ter tido acesso a umas boas calças. Mas a minha preocupação constante era que os meninos não ficassem traumatizados –como eu fiquei para sempre com as recordações de grande carência e quase indigência. Quando um deles fazia anos eu tinha sempre o cuidado de dar uma prenda menor ao que não comemorava. Quando íamos comprar roupa, perante um universo de escolha, eram eles que optavam. Passado uns anos largos, a vida começou a correr bem e já tirava duas semanas de férias e íamos todos para a praia. Brincávamos todos como se fôssemos crianças da mesma idade. Entretanto ia adquirindo e lendo os livros de Daniel Sampaio que me transmitiam que a criança deveria ser acompanhada sem contrariedades.
Um dos meus filhos sempre foi mais difícil. Mesmo na escola já criava alguns problemas. Eu, como galinha que protege os pintos, lá ia falar com o professor. O docente dizia-me que o menino era difícil, gostava de dar nas vistas sendo às vezes arrogante, mas eu não ouvia, para mim a criança era honesta e dizia o que tinha a dizer. Foi para o secundário a mesma coisa. Era chamado à escola porque o rapaz tratou mal um professor. Para mim era um caso da escola mal preparada para lidar com crianças sobredotadas, demasiado inteligentes, e continuava a dar razão ao miúdo. Quantas vezes eu tinha um revés e, chegando a ser bruto, dava em cortar a ração, como quem diz, “se não apresentas resultados não tens direito a prémio”. Logo vinha a mãe, minha mulher, em sua defesa porque o menino não devia ser contrariado. Ele tinha necessidade de afecto e eu não lhe dera o suficiente. Eu só soubera trabalhar. Por isto mesmo o catraio se mostrava tão rebelde, enfatizava ela mesmo à sua frente. Com notas médias chegou ao 9º. Ano. Passou para o 10.º mas não arrancou mais. Ou porque o Liceu era assim e assado. Ou porque os colegas eram fritos e cozidos, a verdade é que andou a saltitar por vários estabelecimentos de ensino. Nesta altura, presumo, teria começado a fumar uns charros e a fumaça tornou-se o quotidiano de um dia atrás do outro. Deixou de estudar. Começou a frequentar psiquiatras. Quase à força, obrigámo-lo a trabalhar mas nunca esteve mais do que três meses no mesmo emprego. Os vícios pelas drogas leves tomaram conta da sua vida –felizmente nunca passou para as duras. Algumas vezes, talvez para chamar a atenção ou, sei lá, para nos chantagear ingeriu comprimidos, ou até deu em fazer cortes nos braços. Foram tantos e imensos os percalços nos últimos quinze anos, que só lembrar alguns me fazem chorar como uma Madalena. Como era de prever, este escorregar pelo cano da criança que nunca cresceu foi desgastando a relação entre mim e a minha mulher. Para além disso, fazendo um cocktail mortal, juntou aos charros álcool e hoje não sou senhor de ter uma garrafa em casa.
Presentemente não sai da minha habitação. Há dias, mais uma vez, cortou os membros em pequenos golpes. Sinto-me impossibilitado, impotente, de fazer o que quer que seja. Já não quer ir a nenhum psiquiatra e muito menos a um centro de desintoxicação. Espero o pior.
O outro meu filho, apesar de pequenas diatribes normais para a sua idade, teve um percurso funcional, licenciou-se e, apesar de ter de ir para o estrangeiro, organizou lá a sua vida.
Como não poderia deixar de ser, num final anunciado há mais de uma década, presentemente estou a divorciar-me. Se eu pudesse dar conselhos aos pais de agora, que têm filhos a dar problemas, advertia-os claramente com o seguinte aviso: não se deixem embalar no “canto do cisne”. Crianças como o meu filho precisam de amor, sem dúvida, mas precisam muito mais de disciplina. Sejam fortes com eles. Pai e mãe unam-se na mesma vontade firme de dizer e cumprir: NÃO! É preferível eles chorarem em crianças do que já adultos, sem crescerem e continuando a ser adolescentes, sermos nós pais a sofrer, incapacitados pelo irremediável; chorarmos desalmadamente e termos a noção de que, pela nossa benevolência e por dar de mais, facilitando-lhes tudo e evitando as suas necessárias frustrações, fomos os causadores da sua e nossa infelicidade. Foi pelo medo de que sofressem, como eu sofri em criança, que acabei a sofrer em dobro.”







1 comentário:

Jorge Neves disse...

A minha filha mais nova é hiperactiva e tem epilepsia nocturna o que tudo junto provoca deficit de aprendizagem e de concentração e está a ser medicada.
Teve um excelente acompanhamento na Escola São Bartolomeu por parte da Professora Primaria e agora na Escola Silva Gaio, não posso deixar de realçar a excelente equipa médica e de técnicos que a acompanham no Hospital Pediátrico em Coimbra.
A minha filha é o oposto desta criança da noticia, em casa é um "diabinho" e na escola muitíssimo sossegada e tímida.Ela vai para a escola medicada ao pequeno-almoço e volta a tomar a medicação ao almoço isso faz com que ela fique sossegada e não tenha picos de hiperactividade e de agressividade, já em casa da-se o oposto, porque não toma medicação à noite o que leva a exteriorizar todas as energias acumuladas. Ao fim de semana é terrível porque não toma medicação para a hiperactividade e fica em "pulgas", simplesmente não pára um segundo até ficar completamente exausta no final do dia.
Estas crianças precisam de acompanhamento, compreensão,de muito diálogo para não falar de amor.
Jorge Neves