sexta-feira, 8 de novembro de 2013

A BAIXA E OS SEUS JARDINS EFÉMEROS


 A compra é sempre um acto voluntário. É uma decisão íntima da vontade, subjectiva, que, ainda que despoletada por factores externos –como é o caso da publicidade agressiva das últimas décadas em que arrola na criação contínua de falsas necessidades-, assenta no livre arbítrio. Quanto maior for o grau de necessidade intrínseca mais facilmente será concretizada a aquisição. Assente no mesmo pressuposto da necessidade, existe também a compra por impulso –prática tão estudada e comum hoje nas grandes cadeias comerciais. Até há poucos anos, uma grande percentagem de vendas no comércio tradicional assentava neste género de obtenção de artigos. Como havia muita gente a circular nas ruas, porque acima de tudo havia disponibilidade mental, entrava-se nos estabelecimentos apenas com intenção de olhar e acabava-se a sair com um ou vários produtos. Sobretudo a partir de 2008, em que começaram os cortes na função pública –que era o grande cliente-, a desertificação no comércio da Baixa começou a ser muito mais notada. Se até essa altura uma qualquer loja, entre clientes propriamente ditos e visitantes, teria largas dezenas de frequentadores a transpor a porta, hoje, é um número muito diminuto que quase poderia ser contado pelos dedos. E os que entram procuram essencialmente um género específico porque lhes faz falta e não encontram em mais lado nenhum. O que quer dizer que desapareceu o visitante da compra por ocasião. Talvez resultado da colectiva quebra de rendimentos salariais, as pessoas, para não se tentarem, deixaram de entrar. Claro que poderemos sempre interrogar: mas a recente classificação pela UNESCO de Coimbra como Património Mundial não foi uma dádiva importantíssima para a economia da cidade? Sem dúvida que foi. Porém, com a actual conjuntura internacional, dificilmente este aumento de fluxos turísticos se notará nas lojas de rua. Se outros motivos não houvesse bastava lembrar que a redução das tarifas aéreas e o aumento do custo de bagagens acaba por ser fatal para o comércio instalado. Salvo melhor opinião, o turista “low cost” é um passageiro do tempo que pelo Céu entra e por entre as nuvens se vai. Quanto muito, com toda a certeza, pode ser bom para a hotelaria. O visitante que “aterra” na urbe está mais interessado em visitar a sua monumentalidade, tendo a Universidade como meta.
Então acontece um facto interessante, que poderíamos chamar a teoria do meio copo. Para quem aqui trabalha por conta própria ou assalariado o Centro Histórico está meio vazio; para quem vem de fora, tendo em conta a recente distinção internacional, o copo está meio cheio. É por isso mesmo que a Baixa, nesta altura, é uma espécie de catalisador; um metafórico mecanismo central em que a força de quem vem de novo juntamente com o cansaço de quem cá está há décadas gera nestes uma reação proactiva de esperança no futuro e uma mensagem revitalizadora no público que a visita.
E também outro dado interessante: para quem cá está esta zona nem anda nem desanda. Está sempre na mesma, ou cada vez pior. Acontece que o movimento revivificador entre os que desistem e os que iniciam uma nova actividade é revigorante. Para quem olha de fora verifica que o movimento no “catalisador” é intenso. Fecham lojas, abrem outros negócios no seu lugar enquanto o diabo esfrega um olho. É como se esta parte comercial da cidade se tivesse transformado num enorme jardim floral efémero de catos, em que muitas das suas flores nascem durante a noite e morrem pela exposição à luz. A diferença entre a Baixa que conhecemos, com lojas abertas durante décadas, agora deu lugar a um centro comercial de experimentar para ver o que dá e largar antes que a situação fique sem controlo, com estabelecimentos de duração limitada a meses. Naturalmente que as consequências desta mudança comercial à velocidade da luz é a perda contínua de uma identidade, uma memória de séculos que se esvai perante os nossos olhos. É que se repararmos é isto que perpassa no País: uma onda de afogamento para tudo o que faça parte da nossa história hodierna e do último século –veja-se, em exemplos, os casos do transporte por caminho de ferro no interior que concorre acentuadamente para o seu despovoamento; dos Correios, com o progressivo desaparecimento dos carteiros e cujo acto simbólico instiga a que não se escreva a tão nossa querida carta e cujas consequências, a médio-prazo, serão incomensuráveis. Exagerando um pouco, qualquer dia poucos saberão escrever com raciocínio lógico uma linha de português correctamente. Olhemos o caso da escola pública, verificamos que há um processo acelerado de privatizar o ensino. Obviamente com custos enormíssimos para o Estado, mas, sem olhar ao que há-de vir, apenas para satisfazer clientelas. Durante as últimas quatro décadas gastaram-se milhões em novas estações e apeadeiros, em novas escolas e novos postos de Correio, sem levar em conta o custo dessa manutenção e, ao mesmo tempo, com políticas erráticas e conducentes ao esvaziamento e à desertificação. De repente, numa manhã de nevoeiro, acordámos todos com a sensação de que nada faz sentido. Tudo é excesso e nem o mínimo, o essencial, se pode manter. E a interrogação surge: quem vai dar trabalho aos activos? Esta é mesmo a questão. Até parece que a prece repetida é poupar, poupar, poupar!
Voltando à Baixa, porque, como já é normal, fugi ao tema, começa também a verificar-se outro caso interessante e digno de reflexão. Em face do acelerado desaparecimento de estabelecimentos mais marcantes na recordação colectiva, as casas mais antigas e ainda abertas estão transformadas em santuários, em catedrais de culto, onde se levam os filhos e os netos e, perante estes e sem comprar nada, se diz: “olhai, queridos, era aqui que o avô, há muitos anos, comprava. Esta loja ainda está aberta. Estão a ver?”



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