LEIA AQUI O DESPERTAR DESTA SEMANA
Esta semana deixo o texto "FILHOS DO VENTO"
OS FILHOS DO VENTO
Na década de 1950, era comum os filhos
reverenciarem os pais com um beija-mão e acompanhar o gesto com uma frase
repetida: “sua bênção, meu pai!”.
Este cumprimento de veneração alargava-se ao padrinho de batismo, ao homem mais
rico da freguesia e até ao senhor vigário. Nenhum filho ousava um tratamento de
“tu lá, tu cá” para os seus
progenitores. Era um respeito imposto verticalmente, de cima para baixo. Logo
que alguém era pai, mesmo que fosse um diabo, um trapalhão que não valesse um caracol,
era outorgado pelo espírito do costume na missão de continuar a impor um rigor
austero aos seus descendentes. Ai do filho que levantasse a voz ao progenitor
mesmo se a ordem dada era imoral ou inexequível. Desde o chicoteamento com
cinto, com “canoilho” –tronco do milho ou da couve alta-, com uma ripa, com
cordas dobradas, o recurso ao castigo corporal era um hábito educacional. Era
um uso demasiado repetido na maioria das casas portuguesas, sobretudo nas mais
humildes – prosseguido nas escolas primárias enquanto infante e até depois na
adolescência, no secundário. Se, por um lado, na família funcionava como um
procedimento imposto para marcar o terreno, para vincular a autoridade do “pater familias”, por outro, era como se
fosse um preço a pagar por se ter nascido livre, insurreto, sem controlo nas
emoções e impreparado para lidar com a sociedade aristocrática. Nas linhas iluministas
de Thomas Hobbes e Jacques Rosseau, ajuizando que o homem nasce bom ou mau, era
uma espécie de preparação para o futuro; moldar o indivíduo de modo a torná-lo
dócil e pacífico –e também na orientação ideológica do Estado Novo, assente no
autoritarismo social. Ou seja, educava-se para a subjugação e não para a
liberdade. Aliás, os educadores que furavam este conceito imposto por todos
tacitamente eram apelidados de loucos.
Era comum o pai trabalhar e a
mãe, doméstica, cuidar da prole. Era esta mãe-galinha que com suas asas invisíveis protegia os herdeiros da
ira do patriarca quando, tantas vezes, chegava embriagado, esquinado, a casa e
embirrava com tudo o que mexesse desde o gato até ao cão.
Se numa primeira fase, para os
filhos, este tratamento duro de disciplina espartana causasse revolta com ódio
à mistura, numa segunda, com o crescimento da idade, esse sentimento ia
desaparecendo. O tempo ia desculpabilizando a dureza do ascendente e o agora
pai, copiando os mesmos métodos que tanto infernizou, aplicava igual tratamento
aos seus descendentes. Por conseguinte tudo se esquecia –“porque foi para o meu bem”, dizia-se- e o amor umbilical que ligava
avós, pais e filhos falava mais alto. Numa roda que circulava para todos os
entes, sabia-se que os mais novos cuidariam dos mais velhos e, numa obrigação
ancestral, proporcionariam aos país uma velhice acompanhada –aliás, quando
alguém ousava institucionalizar um familiar num lar de terceira-idade era um
falatório diabólico na vizinhança. Tal ação de desapegamento, perante uma coletividade
amarrada a estereótipos, constituía um ato de desamor a quem tanto deu para
criar tal valdevinos e mal-agradecido. E lá vinha o aforismo de mau filho és, como mau pai serás tratado.
VENTOS DE LESTE
Veio a Revolução de Abril de 1974 e, em
consequência, a família patriarcal, enquanto célula una, cimentada na austera
obediência hierárquica, foi-se esboroando progressivamente. A nova geração
maltratada e abusada por sevícias pelos criadores abriu-se completamente aos
novos ventos de modernidade. O trato relacional entre pais e filhos alterou-se
profundamente. Tal como a queda do muro de Berlim, em 1989, serviu para
misturar as duas Alemanhas, Ocidental
e de Leste, na família, até aí impenetrável a modas que alterassem o
situacionismo, ruíram as barreiras que mantinham o tal respeitinho e passou-se para uma unificação de direitos e
obrigações iguais para todos, independentemente da idade, da condição e da
prestação social. A cada cabeça correspondia um voto. A idade passou a ser um
mito. Bastava a condição de filho para ter direito a semanada, cama, mesa e
roupa lavada –repare-se que, surfando a mesma onda, também nesta altura se criaram
as condições para a implantação do Estado social, aplicando a mesma filosofia:
“se és cidadão, logo, independentemente
de contribuíres ou não para o bem-estar de todos, tens direitos assegurados pelo
único facto intrínseco de seres nacional”. Ou seja, as obrigações
individuais foram sublevadas. O que importava mesmo era a inalienável condição de ser pessoa. Por outro lado, já agora, como
até aí a frequência universitária era apenas possível para os mais abastados,
uma vez que o ensino começou a democratizar-se, apostou-se tudo em cursos
superiores para os filhos. Isto é, sobrevalorizou-se o intelectualismo de pasta
e desvalorizou-se o trabalho material enquanto símbolo da experiência empírica.
Enquanto que nas décadas de 1950
e 1960 os herdeiros eram o acessório básico para a multiplicação do apelido e
um instrumento financeiro de captação de receitas para a sobrevivência do
agregado, a partir de 1974 os filhos passaram a ser o investimento, a aposta
numa oportunidade de um futuro previsível que os pais não tiveram; um jogo de
espelhos onde os progenitores se reviam; uma concretização material, uma
conquista que, individualmente, não fora alcançada em tempo útil mas que, pelo
contentamento sentido, dava a mesma satisfação. Passou a ser a prossecução de
um “continuum” social e ao mesmo
tempo um ajuste de contas com o passado. O filho, portanto, passou a ser na
família o centro, o nuclear, de toda a atenção dos pais.
Seria de supor que, recebendo em
triplicado, bem-estar, afeto e formação, o que os ascendentes não provaram,
esta nova geração saída a partir de meados das décadas de 1970 e seguintes
seriam reconhecidas a quem tanto lutou para lhes proporcionar uma vida tão
cheia de ferramentas. Ora o que aconteceu foi que, socialmente, o resultado é simplesmente
catastrófico. Com as devidas exceções naturalmente, estas extirpes são do pior:
egoístas, cínicos e pouco dados a carinhos aos mais idosos. São simplesmente
parasitas para quem os criou com tanto amor e ternura. Pior do que isso, são
maus e não escondem a sua índole de malvadez. Tratam os mais velhos como se
fossem crianças imberbes, impondo a sua vontade torcionária. Tomar conta deles
está completamente fora de questão. São coisas sem prestabilidade para morrerem
esquecidos num qualquer hospital. Em metáfora, como vampiros, apenas estão
preocupados em sugar o sangue que lhes corre nas veias –como quem diz
chupar-lhe todo o dinheiro que tenham. O que conta é o seu interesse mesquinho
e atrofiado e pouco lhes importa a felicidade de quem tanto lhes deu. Numa
frase final: FILHOS DO VENTO!
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