(Imagem da Web)
Tenho dias que creio não
pertencer a esta época hodierna. Sinto que sou do passado, filho de um tempo
que já não é o nosso. Tenho saudades desse período. Era uma época em que tudo
rolava devagar. O vento soprava, a neve caía, o Sol brilhava e nós dávamos
conta dos seus efeitos. Sabíamos que quando os raios solares batessem na
esquina da sapataria do senhor “Manel” seria meio-dia. O astro-rei era o nosso
relógio natural. As pessoas transitavam calmamente nas ruas com um sorriso
colado no rosto. Íamos à mercearia da esquina e o senhor Salomão, o dono, de
bata acinzentada, atendia-nos um quilo de açúcar a granel retirado da tulha e,
às vezes, enganava-se no peso. As coisas não eram previsíveis. Para alcançar
fosse o que fosse era preciso percorrer a pé uma longa estrada forrada a paralelepípedos,
pedras acinzentadas em cubos. Em todos os largos floridos da cidade havia
crianças a jogarem à bola.
Estou transformado num velho a
ver o mar e a recordar as caravelas de Vasco da Gama, em 1497-1499, na
descoberta do caminho marítimo para a Índia.
Hoje é tudo muito rápido. Os
dias, como mensageiro apressado em levar a boa-nova, passam por mim sem os ver.
Não porque não tenha folga. Tenho muita; demasiada. Então porque passa o tempo
a correr, como se quisesse fugir de mim? Sei lá! Provavelmente os meus olhos já
não são os mesmos. Endureceram e deixaram de se fixar nas coisas simples, como,
por exemplo, um louva-deus a pousar na soleira da porta. Se calhar noutro
tempo, talvez por ser mais novo, queria somente viver. Hoje, mais velho, no
epílogo da vida, tento apenas sobreviver –não que o faça de qualquer forma e
feitio. Isto é, que passe por cima de tudo para o conseguir. Por agora ainda
não. Amanhã sei lá?! Ninguém sabe o que acontecerá daqui a um dia. Por enquanto
consigo pensar; e ao pensar liberto-me; é como se me dividisse em dois e fico
mais aliviado; aliviado, mas não com as preocupações resolvidas. Tento ir ao
fundo das coisas; perguntar porque são assim e não são de outro modo? Andamos
todos ao engano. Como náufragos na imensidão perdidos, agarramo-nos a tudo, sobretudo
à paganística secular, para chegar a terra-firme, como quem diz, a amanhã.
Fugimos a toda a pressa da jornada de hoje. Quando nos deitamos na cama,
cansados de tanta falta de perspectiva e sem vislumbrar a luz ao fundo do túnel,
em vez de rezar como antigamente e agradecer a Deus a graça de mais um dia
passado, respiramos fundo e pensamos: “ufa! Este já está! Vamos lá ver o
próximo!”. A sensação é sempre de perda. É como se sentíssemos que os sonhos
construídos ao longo da nossa vida são agora farrapos a esvoaçar ao vento.
Sentimos que estamos todos a entrar pelo cano que leva ao lago da imundície. Entre
todas, a maior tragédia que alguém pode suportar é o perder tudo o que foi
conseguido com suspiros de amor e lágrimas de sangue. É sentir que se foi um
mero passageiro sem história, uma nuvem sem corpo, um inútil que não serviu
para nada. Tudo o que se fez, como pingos de chuva no areal, se esvaiu no
vazio. Uma coisa é nunca ter alcançado um estado de conhecimento, mantendo-se
na ignorância, outra é enxergar, vivê-lo e, como se apagasse tudo com esponja,
ser obrigado a regressar ao ponto de origem como num eterno retorno
probabilístico.
As notícias são cada vez mais
desanimadoras estamos à beira de tumultos civis. Há dias foram os polícias na
escada do Parlamento, hoje são os sindicalistas da SGTP a invadir os
Ministérios. O problema é que não sabemos para que lado cair na avaliação racional. Sabemos que os manifestantes têm razão –eles representam-nos em corpo
e alma. Sabemos que este Governo é fraco na convicção que transmite ao povo,
não tem autoridade legitimada –não porque não ganhasse as eleições, mas porque
os atentados contra os cidadãos são tantos que lhe retiram a autoridade moral
para continuar a governar. Toda a cúpula do Estado está entregue a pessoas ora
sem passado político, ora com passado demasiado ligado às patranhas e
negociatas. Mas e o governo que vier a seguir? Será melhor? Claro que não. Há
muita manipulação política por detrás destas acções. Há um movimento deliberado
e direccionado para derrubar este executivo –“porque não serve o povo”, diz-se e
a maioria concorda. O Governo está transformado num Robin dos Bosques ao
contrário: assalta os mais desfavorecidos, essencialmente os que estão no meio
da tabela, para entregar de mão-beijada aos grandes grupos económicos. E o que
vier a seguir? A mesma coisa, idem aspas, aspas. Este é o verdadeiro drama. É
como se de espada empunhada se lutasse contra o vento. E o mais grave é que
este sentimento de ditadura para a classe média perpassou para as autarquias. O
comportamento é igual como papel mata-borrão. Buscam apenas o poder para,
depois de o conseguirem, manobrarem a máquina administrativa a seu bel-prazer;
colocando os amigos nos pontos-chave e distribuindo empregos aos correlegionários.
À força toda procura-se retirar este
Governo para se substituir por outro mais de acordo com as convicções partidárias
de cada um. Duvido muito de que o interesse do País esteja em primeiro lugar –e
curiosamente quem disse isto há dias numa longa entrevista de quatro páginas no
Diário de Notícias foi João César das Neves –saliento que não me identifico nem
um bocadinho com a sua ideologia, mas aprecio-o pela coragem manifestada. Num
País de mimética de carneirada, em
que todos pensam pela cabeça do vizinho, é de louvar quando alguém ousa dizer o
que lhe vai na alma. Depois disso, César das Neves tem sido insultado a torto e
a direito nas redes sociais. A questão que se coloca é: quantas pessoas leram a
entrevista? Hoje é comum pegar numa frase descontextualizada, colá-la na
Internet e sem suporte de contexto passa a valer como um todo. Porque a maioria
nem jornais lê nem está interessada na verdade factual que lhe permita pensar e
retirar uma ilação própria, sua, livre e sem ser conspurcada em motivações
políticas alheias. Em metáfora, é como se passássemos a emprenhar pelos olhos. Vivemos no meio de um universo de informação que, em
vez de informar, desinforma e, sem grande subtileza, pode servir vários
interesses, todos, menos o esclarecer o cidadão. A sensação que se tem é que
andamos todos cada vez mais perdidos e sem saber para onde caminhamos. Que
saudades que eu tenho de outros tempos! Estou velho, eu sei!
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