quinta-feira, 28 de novembro de 2013

O CONFESSIONÁRIO PÚBLICO

(Imagem da Web)



 Antigamente, no tempo em que tudo era real e, sempre que possível, se procurava falar olhos-nos-olhos, os cristãos, diariamente ou semanalmente, antes de comungar, iam confessar-se ao presbítero, à igreja da zona. Este procedimento do sacramento da confissão para a Igreja Católica e outras religiões, a nível psicológico, ao dividir a transgressão esta torna-se mais leve e por isso sofrível. É como construir uma ponte a ligar duas margens de um rio, em que de um lado está o Inferno da depressão e do outro lado a redenção, a aceitação de que somos seres erráticos, finitos e imperfeitos. Confessar algo, que nos martela a cabeça continuamente e nos põe loucos, a alguém que tenha paciência para nos escutar é como um náufrago procurar no meio do oceano uma boia de salvação; é uma busca de compreensão para o facto consomado do delito e uma tentativa de reconciliação do ego, enquanto mediador que organiza a mente consciente, uma busca da paz interior e um encontro com a remissão, o perdão para uma consciência em conflito. Por outro lado, para o praticante religioso é o sentimento de, em pecado assumido, procurar o indulto e receber a bênção de Cristo –enquanto Pai e entidade que transcende o humano na piedade e na omnipotência- e aceitar uma penitência, uma reparação de danos causados pelo acto ou pagar um tributo –que, quando leve, pode ser com orações-, que será recomendada pelo confessor, o sacerdote, se acontecer na religião apostólica-romana. Por outro lado ainda, para o vigário, o segredo da confissão é obrigatório pelo direito canónico.
 Nos nossos dias, para os seguidores profanos que se religam entre si numa cadeia de elos invisíveis, o Facebook passou a ser o confessionário público diário. Por conseguinte, nesta forma de se abrir ao mundo, a substância deixou de ser algo íntimo e pessoal e passou a ser a forma de levar tudo ao conhecimento geral –e aqui, assiste-se a dois tipos de assistentes: os mais chegados que, com ternura e afecto, aceitam o facto passivamente e dão alento ao delator, e os mais afastados que, ostensivamente e sem sensibilidade, são mais duros na apreciação, gozando às vezes, e provocam mais dor. Numa rede translúcida, cujos objectos nem sempre são nítidos, em que se adivinha o confidente pela exposição de imagem, o confessor, normalmente sem rosto, passou a ser todo o planeta. Quem quiser opinar, na maioria dos casos, julgando arbitrariamente, pode fazê-lo sem restrições. Nesta página aberta ao mundo, consoante seja homem ou mulher, se expõem a actualidade e um tempo de lembranças gravadas a fogo.
Se for mulher, as fotos são a essência da sua afirmação. Se for de meia-idade, são mostradas imagens com trinta anos, em que aparece um rosto sem pregas, um colo de fazer ressuscitar um morto e umas pernas de fazer um mudo assobiar. Volta e meia mudam as fotografias de perfil e lá está a pose numa longa viagem num local paradisíaco para sempre recordar. São também frequentes as citações de filósofos e escritores mundiais contemporâneos e da antiguidade sobre o amor. A paixão é o combustível sem lastro que move o coração de uma mulher. A benquerença ressalta em montanhas de adoração. E, como não poderia deixar de ser, lá vem a música romântica, sempre, para embalar o espírito e a esperança num amor novo de encantar que, saído das trevas, há-de surgir um dia montado num cavalo branco -creio, não haverá estudos sobre o impacto que as redes sociais deixam na psique de cada uma, mas é bem possível que actue em sentidos distintos. Num, pela desconfiança implícita assente no medo, é bem possível que provoque um fenómeno de desvalorização rotineira; noutro, pela carência de afecto, qualquer uma se torne vítima fácil de um qualquer energúmeno.
Como a solidão é um casacão que se envergou e passou a armadura contra as angústias obsessivas, os animais passaram a ser o companheiro a defender por todos os meios contra a tirania inumana. Não há mulher que se preze que, através de muitas imagens plasmadas, não confesse amar um gato ou um cão. Em alguns casos, embora mais raros, lá vêm as receitas culinárias, acompanhadas de fotos, para uns doces de estalar o palato. Se for avó, mostra os netos em pose de troféu e orgulho de mulher-mãe duas vezes. Como projecção do sonho de libertação, o mar, com o seu fundo azul, está omnipresente. Pode avistar-se uma nau Catrineta ancorada na baía imaginária da esperança à espera de um homem novo, menos egoísta e de partilha, que dê carinho sem fingimento –penso, raramente este desejo será satisfeito. Mesmo se hipotecticamente aparecer algum homem que preencha os requisitos não será aceite. O factor psicológico procura de resposta impossível torna-se autofágico, passa a alimentar-se a si mesmo. Se acaso fosse preenchido materialmente perderia o encantamento. Como num círculo sem retorno, a mulher enreda-se no seu próprio sonho e só excepcionalmente sairá dele.
Se escrever e tiver veia de poetiza, imaginariamente serão escritos num barquinho de papel, os versos serão sempre encaminhados para o amor perdido que, como Lua a iluminar a sua vida, passará a ser o seu luar. As lágrimas de crocodilo rolarão nas consonâncias em solavancos de cercanias agora áridas e outrora floridas. Se não tiver jeito para as rimas, serão copiados poemas de autores bem conhecidos. Estranhamente e num paradoxo, aqui neste reino das súplicas quase sempre vazias e a caírem em saco roto, serão debitadas orações destinadas a Deus –como se Ele também estivesse conectado na rede mundial

E OS HOMENS?

Como se confessam os homens no Facebook? Se for novo posta fotografias onde se encontra acompanhado com muitas jovens mulheres esculturais para fazer inveja àquela amiga que traz debaixo de olho. Se for de meia-idade, inevitavelmente faz da política o sustento da sua alma. Tem permanentemente um canhão apontado ao Governo, seja ele de direita, centro ou esquerda. É anti-poder por natureza. Gosta de colar na sua página os recortes de jornais onde circulam longos desabafos de opinadores generalistas, habitualmente jornalistas. Se for político de profissão –ou candidato em ascensão- ou ocupe um bom tacho na administração pública lá vem a defesa do seu partido na autarquia em que faz parte. Se for empresário ligado ao comércio tentará vender qualquer coisa, desde uma viagem ao Inferno com paragem curta no Céu até a uma máquina fotográfica usada. As vendas de objectos, talvez por ainda não haver tributação, são hoje a praga interesseira, o vírus maléfico da comunicação. O futebol, naturalmente, estará sempre presente na página de um homem cinquentão e as fotos dos seus ídolos marcarão presença constante. Como não poderia deixar de ser umas imagens de mulheres semi-nuas e o link para outros endereços do género encherão o olho a todos os amigos. Se escrever, utilizará este confessionário público como catarse para dirimir todas as suas emoções e relações mal resolvidas. A música fará parte deste seu mundo de retratação e comunicação mundial. Curiosamente nos dois géneros, masculino e feminino, constata-se o mesmo procedimento: se for novo, aceita o presente com fotos actuais, e tenderá a projectar-se para o futuro. Se for de idade já madura, somente plasma o presente em imagens de festas ou passeios, mostrando que está muito bem de vida; o recurso a fotografias de uma cidade desaparecida inserida em sopros de déjà vu será uma constante e como se estivesse petrificado no passado.
Como as coisas mudaram! Quem diria que, num sentido catatónico e de completa imitação, passaríamos a mostrar toda a nossa vida ao mundo e, em outro, como se tivéssemos perdido o juízo, o bom-senso, nos transformaríamos em voyeurs?


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