A mulher entra em passo ligeiro em direcção à casa-de-banho do pequeno café. Percorrendo a distância que a separa da porta de entrada, não cumprimenta, não olha para ninguém. O dono do pequeno estabelecimento, habituado a fazerem da sua casa um “cagatório” público sem “água vai” ou qualquer satisfação e adivinhando o objecto da visita, intercepta a senhora na sua marcha velocipédica e diz-lhe: “bom dia, precisa de alguma coisa?”. A mulher, bem vestida, como locomotiva chiando com barulho de ferro contra ferro, por força de travões a fundo, estanca, vira-se para o balcão e diz: “um copo de água!”.
O homem, o dono do pequeno espaço, contraindo a face, fazendo duas rugas no canto da boca, enterra a cabeça pelo pescoço abaixo, serve-lhe o solicitado copo com água. A mulher bebe de um trago, como se tomasse um comprimido, e avança novamente em direcção ao pequeno cubículo das aliviações. Saiu, novamente engrenada em quinta velocidade de cruzeiro em direcção à porta, como se fugisse de si mesma, ou do acto que talvez a compungisse, mas, por falta de uma moeda na algibeira, assim estava obrigada. Antes de atingir a porta de saída, numa distância que, se calhar, para ela, seria mais longa que uma vereda de pedras envolta em tojos de picos, o homem do café atirou: “obrigada!”. Novamente a mulher, como avião em pista pronto a levantar voo e obrigado pela torre a suster a velocidade, pára, olha para o homem da mesma forma que visse um fantasma e, meia atarantada, soletra: “obrigada!”. E vai porta fora, quem sabe a remoer –ou não- no facto de ter tomado consciência de ter sido mais um cliente “persona non grata” para o responsável pelas imensas despesas diárias daquela pequena loja. O senhor Jorge riu, quem sabe com um ardor na alma, e eu, com simpatia, sorri também.
SAFAR, EIS O VERBO
Helena é uma mulher que veio do nada, mas do nada se tornou gente. Filha de um rancho enorme nascido na pobreza dos difíceis anos de 1950, se escrevesse um livro, provavelmente, seria lido num ápice desde a primeira frase até à última. Mas esses tormentos de escolhos que lhe feriram o corpo e lhe cunharam a alma fizeram dela uma mulher forte. Raro é o dia em que vá comprar o jornal ali para os lados da Rua dos Oleiros e o seu rosto não esteja iluminado por um imenso sorriso que mais parece um pôr-do-sol.
Há dias, estranhamente, estava sorumbática, com cara de nuvem carregada de tempestade. Há poucos minutos, mais uma vez, um pedante bem-falante tinha acabado de tentar dar-lhe a volta. “Veja lá que me chegou aqui, e do alto do seu caro fato de bom corte, pediu-me três maços de Marlboro. Coloquei-os em cima do balcão. O presunçoso abriu logo um e retirou um cigarro que imediatamente colocou nos lábios. Eu fiquei à espera do pagamento. Ele levou a mão ao interior do casaco “Armani” e, fazendo um acto teatral, desfez-se em mil desculpas, tinha deixado a carteira no carro. Que eu desculpasse que ia lá buscá-la. Em cima do balcão ficaram dois maços e outro já aberto foi com ele. Deu-me assim um baque e fui atrás dele. Já estava com o carro a trabalhar e pronto a arrancar. Coloquei-me à frente e pedi-lhe o pagamento. Com um descaramento do “caraças” abriu o vidro da “bomba”e disse que não tinha dinheiro. Ai não?! Então faça o favor de me devolver o maço de tabaco violado. E devolveu mesmo. E foi à vida. Grande cabrão!”. O que uma pessoa está sujeita!
Todos os dias me surgem formas novas de engodos para me tentarem enganar. Olhe há dias apareceu-me aí um tipo com uma revista cara na mão a pedir-me se não fazia o favor de lha trocar por um a maço de tabaco. Abri a página interior e, pela marca, vi que o magazine era meu. Tinha acabado de mo surripiar na entrada. A minha sorte é que eu registo sempre, com uma pequena marca, tudo o que recebo. Já viu este?!
Outra vez, estava aqui dentro e comecei a ouvir lá fora um rapaz ainda novo a falar com uma senhora. Dizia ele, “ó mãe empresta aí 5 euros para eu comprar uma maço de tabaco que logo tos darei, e entrou e pediu o tabaco. Eu dei-lho e ele disse, só um momento que a minha mãe está tirar o dinheiro e foi saindo. Eu vim à porta à espera que a senhora me desse o dinheiro, mas ela não mostrava vontade. Até que lhe falei. Ela respondeu: “ó minha senhora, desculpe lá, mas não tenho filhos daquela idade!”
Olhe, poderia estar aqui horas a contar-lhe as imensas peripécias com que sou contemplada todos os dias”. E, como se com esta conversa em forma de catarse tivesse ficado mais aliviada, lançou um grande e estridente sorriso.
5 comentários:
Muito realistas os seus textos.
Gostei.
O problema é que as pessoas estão parvas de todo e não são capazes de fazer aos outros o que gostavam que lhes fizessem a elas, como co-habitantes que somos todos neste planeta, neste país e, em especial, nesta cidade.
Porque quando se rouba a um, roubamos a todos...
Porque quando não pagamos o que usufruímos, somos nós que perdemos a longo prazo...
Mas e paizinhos que ensinem os filhos a respeitar o que é seu e o que é dos outros como se fosse seu?!?
Mas e mãezinhas que ensinam a dizer "por favor", "obrigado" e "desculpe" com sentimento e respeito?!?
Mas e famílias que prezem o tempo em conjunto e partilhem o seu amor com o mundo e os outros, mostrando o património cultural e arquitectónico com orgulho e respeito?!?
Haja esperança, porque a paciência vai mingando...
À Martinha Lacerda, essa minha aparente admiradora desconhecida, que as artroses não lhe obstaculizem o teclar afincadamente essa máquina a que muitos chamam computador -a propósito, descobri agora, um nome espectacular. Provavelmente baptizado assim a pensar no homem... com... puta...dor. Estou para aqui com especulações, espero que a avozinha não se ofenda. Às vezes tenho destes "vipes". São "flashes" em forma de memórias que a amiga, certamente, também terá.
Obrigada, vovó... e cuidado com o reumatismo, essa desgraça que ataca os mais velhotes.
À minha princesa do Reino dos Olivais, que já há muito tempo que não me visita e sinto a falta dela, o meu obrigado. Gosto sempre do escreve. Sempre com um lado para fazer pensar. Agradecido, minha amiga.
Há volores que se perdem, como o da educação e o do respeito pelo outro. Cada vez mais há indivíduos que se consideram no direito de fazer e dizer o que lhes apetece, independentemente dos efeitos que isso possa provocar noutras pessoas. E mais grave ainda é que algumas dessas pessoas vêm a ocupar lugares de destaque na nossa sociedade. La mentável! Talvez nos compita a nós, os "menos espertos", os "simples", aqueles que ,apesar de tudo, conseguem sorrir depois de um despaupério, dar umas lições a essa gente. Cara a cara, e não encapotadamente, como essa gente. Em nome de uma sociedade melhor...
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