Ontem, Quarta-feira. São 9H30 da manhã. Junto ao pilar, a que foi diagnosticada uma doença congénita de largo espectro contagioso, e que levou, na semana passada, a interromper o tráfego ferroviário entre Coimbra A e Coimbra B e a isolar toda a área envolvente, três homens, sem protecções especiais, calmamente vão montando as estruturas em ferro, como quem prepara uma sala de operações para uma cirurgia de grande importância.
Um pouco de longe, aceno e cumprimento: “bom dia! Posso tirar umas fotos?”. Ninguém respondeu. Embora o ambiente fosse de calma –o que até se compreende para operações de tão grande envergadura-, certamente nem notaram a minha presença. Quem sabe, ao levantar um olhar, não fosse o tabuleiro da ponte cair. E para piorar, eu nem tinha capacete de protecção. Era morte instantânea, certinha e direitinha. Claro que eu, que não sou parvo, antes de ir lá para baixo, accionei todos os meus protectores. Desde o Santo Onofre, ao menino Jesus da Cartolinha, estava tudo de prevenção. Por isso mesmo, quando os operários, certamente, sei lá, digo eu, tremiam de medo perante o gigante de cimento, eu, armado em “quantos são…quantos são?”, assim a fazer lembrar o homem do Norte, carago, andava por ali como se estivesse nas minhas sete quintas. Ou melhor, desculpem, na única que tenho que é…quinta…feira. Não sei se estarei a ser claro, mas acho que sim.
Continuando, descontraidamente, embora de pé-ante-pé –não fosse o Diabo tecê-las. Eu sei lá se ele poderia subornar algum dos meus santos protectores? Ah pois é! Se isso acontecesse, com o meu excesso de confiança, lá ia eu para os anjinhos. E não é por nada, mas ainda fazia cá uma faltita, é ou não é? Quem é que depois escreveria estas histórias malucas que ninguém lê? E mais grave: tenho um netinho que, já adivinho, quando crescer, vai ter de colocar uns tampões nos ouvidos para não ouvir o avô. Até já estou a vê-lo, com ar maçado, interrogar: “outra vez, avô? Já contaste essa história da tua infância quarenta e cinco vezes. Tem dó!”. Ora, se eu morresse, quem é que lhe ia contar as minhas façanhas? Pois é, como vêem faço cá ainda muita falta.
Bom, mas isso também não interessa nada para aqui. Estou a trabalhar em serviço de reportagem no exterior. Ou melhor dizendo, eu estava na “cova do Lobo”. Destemidamente estava mesmo ao lado do gravemente enfermo pilar que fez interromper o acesso à cidade de comboio, e de automóvel para sul. Claro que, verdadeiramente, o que me levou ali foi mesmo entrevistar o doente, trabalho jornalístico que, até agora, ninguém tivera a ousadia de fazer.
Reparei, por acaso reparei, que o pilar estava todo entaipado em ferro até ao cimo. Naturalmente que isso iria complicar a minha missão, mas para mim, “Olho de Lince”, de pena desembainhada, não há barreiras nem mundos que me contenham.
Estava visto que o pilar não poderia responder às minhas perguntas, mas também não me importei nada. Disse-lhe ao que ia, e que me poderia responder apenas com um abanar de cabeça. Como quem diz, abanava o tabuleiro de suporte. E assim não haveria problema nenhum. Por acaso já tenho muita prática disto. Ainda há tempos estive no Afeganistão e entrevistei uma série de soldados americanos que estavam todos embrulhados em gaze na cabeça. Ora, digam-me lá, com franqueza, não é muito mais fácil entender um pobre pilar doente do que um qualquer americano? Pois é. E se eu me desenrasquei lá com os militares dos “states”, aqui, neste campo de guerra, algures, entre a Estação Velha e a Estação Nova, também me haveria de desenredar. Como diz o povo, “a tropa manda desenrascar”.
Então mandei a primeira pergunta ao pilar, parecido com um pénis. É claro que não gravei, uma vez que ele não ia responder, mas tomei notas no meu bloco que me acompanha sempre nos traçados internacionais.
-Desculpa lá, ó pilar, é verdade que estás com uma grande infecção bacteriana, que por ser tão grave, até levou ao isolamento da zona dos arrabaldes de Coimbra?
-Abanou o tabuleiro em jeito de assentimento.
-Mas, diz-me lá, consta-se na cidade que tu que te andaste a meter onde não devias, é verdade? Dizem por lá, no Centro Histórico, que são uma má-língua do “camano”, que tu apanhaste uma doença venérea. É verdade?
-O pilar abana o tabuleiro em sinal afirmativo.
-Diz-se ali na Baixa que a infecção que apanhaste é Sífilis, é verdade?
-O tabuleiro abanou outra vez.
-Pelas lesões que apresentas na mucosa, embora eu não perceba nada disso, mas quase garanto que é isso…
-O pilar voltou a abanar o capacete.
-Mas, olhando para a tua cabeça de martelo…parece-me que também estás com um “esquentamento”…gonorreia…não sei se conheces…
-Não houve movimento oscilatório, como se tivesse ficado apreensivo.
-Mais uma coisa que me queima de curiosidade, mas como é que isto aconteceu? Já estou a ver que o serviço foi mesmo feito aqui...
-O pilar abanou o tabuleiro.
-Ó pá, desculpa lá, então mas as coisas foram feitas à frente dos teus colegas? É pá! Até podias ter sido preso por atentado ao pudor…
-O pilar abana em sinal de negação.
-Não? Como não? Não me digas que os teus camaradas andavam a fazer o mesmo?
-O tabuleiro abana afirmativamente.
-Tchi…patrão! Quer dizer, há trinta anos que isto aqui é uma rebaldaria. E ninguém se apercebeu?
-Uma espécie de oscilar os resguardos do tabuleiro –como se, metaforicamente, encolhesse os ombros.
-Achas que este teu acidente de percurso seria motivo para este alarde todo? Parece que isolaram a cidade em quarentena…
-Os tabuleiros de cima abanaram completamente, como que a dizer-me que esta gente é toda louca e eu também não escapo...
1 comentário:
Este repórter esta cada vez pior. Então não é que falei com ele ao final do dia sobre o facto de já se encontrarem a montar andaimes em volta dos pilares, ao que ele me respondeu que se encontrava a ultimar essa mesma reportagem. Venho hoje para saber novidades e sai-me com uma história destas. E ainda bem que a vida são são só amarguras, faz-nos bem sorrir um pouco.
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