O sino da Igreja de Santa Cruz bateu as 22 horas. O espectáculo estava anunciado para as 21,30, mas, afinal, “meia-horita” nem é grande coisa. Está bem que são dois quartos académicos, mas, ora, ora, a representação está prestes a começar. Os imensos espanhóis, ou melhor, as espanholas sentadas nas primeiras filas fazem a festa. Naquela linguagem viva e de imensa graça, há um ruído de alegria e contentamento. Os seus rostos estão libertos e descompassados com olhos cintilantes. Vestem informalmente embora com algum cuidado. Os cabelos foram todos arranjados e os olhos têm sombreados com rímel e cores de festa. Atrás de mim, uma cota, de cinquenta e poucos anos, levanta-se, coloca os seus “airbags” mesmo junto à minha cabeça. Não me faço rogado, já há muito que não me lembrava de um recosto iberista tão fofinho. Com grande vigor, exclama: “ESPAÑA VIVE!”. Mentalmente, repeti com ela “Viva Espanha”, e ainda acrescentei: “Madrid me mata!”. A Espanha acabava de se consagrar apurada para a final do mundial ao bater a Alemanha.
O apresentador de serviço, vestido com uma t-shirt de algodão, anuncia que o evento está prestes a começar. Talvez porque estava fora do contexto, não ousa chegar muito à frente do patamar que serve de palco em frente às portas da Igreja de Santa Cruz. Quem sabe em substituição, em cima da hora, de alguém, no mínimo, vestido a rigor e que este espectáculo impunha.
Chega a vereadora da Cultura, Maria José Azevedo, e senta-se na primeira fila. A seguir chegou o presidente da Empresa Municipal de Turismo, e também fadista, Luís Alcoforado, que se acomoda ao lado da representante institucional da autarquia. Ambos, nos organismos que representam, são os grandes apoiantes das festas da cidade.
Como farol que bate a costa com o seu raio de luz, dou uma “pestanada” na grande assistência maioritariamente composta por portugueses. Olho os seus rostos e comparo-os com os de “nuestros hermanos”. Estão tensos, apreensivos, quase graníticos. Não se notam manifestações de grande emoção. Esperam o espectáculo de cordas. Atenção…atenção, ouve-se uma grande salva de palmas, o espectáculo vai começar.
Entra o “Ensemble de guitarras de Coimbra”, de Paulo Soares. É notória a grande qualidade instrumental do ex-aluno de Jorge Gomes e agora professor de guitarra do Conservatório de Coimbra. Transpira simplicidade na empatia com o público.
A assistência gosta. Piscando o olho ao professor da Faculdade de Psicologia da Universidade de Coimbra e também presidente da Empresa Municipal de Turismo, embora não esteja previsto, Paulo Soares convida Alcoforado a acompanhar o grupo com a sua magnífica voz num arranjo instrumental de um tema de José Afonso.
Enquanto decorre o trinado das guitarras de Coimbra e violas clássicas, várias pessoas, para atravessarem a praça –em vez de o fazerem por detrás dos espectadores- passam entre o público e os artistas. Nenhum funcionário da câmara ousa desviar aquelas almas insensíveis. Paulo Soares termina a sua performance. É ovacionado de pé.
Agora é outro apresentador, ligado à autarquia, vestido também com uma “t-shirt” de algodão, com a frase “Coimbra Encanta-me”, que anuncia a “Orquestra de Laudes Españoles Conde Asúre”, de Valladoli. Salta à vista o aprumo profissional dos artistas da terra de Cervantes. Estão todos vestidos de preto. Mentalmente, volto a fazer a comparação entre o rigor destes instrumentistas e o vestir informal, a raiar o mau gosto, dos apresentadores certamente designados pela autarquia e pela Turismo de Coimbra.
Quase no fim do concerto, presumivelmente por já estar farto de ver atravessar o espaço visual entre o público e os artistas, perante o arremedo de um casal ainda novo que se prestava para atravessar aquela fronteira, um funcionário camarário estende a mão e, certamente, exclama para o casal afoito: “alto e pára o baile, não podem atravessar!”. Azar do “camano”! Então não é que eram familiares da vereadora da Cultura? “Porra, que grande chatice!”, terá pensado o empregado, enquanto se desunhava em desculpas e lá dava a necessária permissão.
Os nossos amigos “españoles” deram um grande concerto musical. Foram ovacionados de pé durante vários minutos. Não ficava nada mal quer à vereadora da Cultura quer ao presidente da Empresa Municipal de Turismo se no fim, ambos, levantando-se dos seus lugares, fossem cumprimentar os músicos e agradecessem ao público presente. Este comportamento, em paradigma, para além de mais, significa um gesto humilde do político que, estando no desempenho do cargo público, está ali para servir.
O anterior vereador da Cultura, Mário Nunes, lá nisso, não deixava passar uma oportunidade destas para brilhar à frente dos seus eleitores.
No canto, junto à porta do “Pinto & Filhos”, não se sabe se desanimado pelo pouco rasgo da vereadora da cultura, se farto da minha implicância, o “Amanhã-às-nove?”, um cromo cá da freguesia, dormia a sono solto e marimbando-se para todos.
1 comentário:
Também lá estive e vi o nosso conhecido fotógrafo "Olho de Lince", sentado senão me engano na 3ª fila, junto da sua simpática esposa. Andou ainda um bocado fugido, sei que em serviço, mas não tive o prazer de dialogar com ele para não incomodar o espectáculo. Tinha todo o prazer em o convidar a vir tomar uma bebida, que não ao Santa Cruz, porque das duas vezes que lá entrei nestes últimos tempos, sendo uma delas ontem, sai bem escaldado (na carteira)
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