sábado, 10 de abril de 2010

EDUARDO, OLHOS DE MÁGOA






 Nasci ali para os lados de Nelas. Próximo de Viseu. Chamo-me Eduardo e tenho agora 52 anos de idade. De todos os meus irmãos eu nasci diferente. Mais metido comigo mesmo, mais ensimesmado. Enquanto os outros brincavam com outras crianças, eu, sozinho, fazia desenhos com um pau na poeira da terra calcada. Tantas vezes me lembro de me deitar na erva fresca e olhar a Lua. Então, acordado, sonhava que um dia haveria de ser alguém e sairia daquela terra triste de homens, onde só o cantar da cega-rega, o rumorejar do mocho, ou o coaxar da rã, me davam o alento necessário para voar em pensamento.
O meu pai nunca me entendeu. Nem conseguia nem nunca procurou compreender-me. Descaradamente chamava-me a “ovelha negra”. Acho que nunca gostou de mim. Que era um carrasco, lá isso era. Bom, vá-se lá saber, certamente teria as suas razões. Quem sabe se preferia uma menina e eu nasci rapaz. Nunca cheguei a saber a causa de me detestar tão profundamente.
Como pintainho perdido no espaço, só a minha mãezinha me acolhia nos seus braços longos de amor. Talvez porque me isolasse de tudo e todos, provavelmente, a sorte também nunca quis nada comigo, e foi assim que num golpe cruel fui despojado da única pessoa que daria vida por mim. A minha mãe, sem me dar um beijo de despedida, partiu para a última morada, sem que eu pudesse fazer nada para o evitar. Tinha eu então 12 anos. Se estava só, mais só fiquei neste mundo. Nunca mais fui o mesmo.
Abandonei a escola cedo. Não tinha paciência para os livros. Não é que não gostasse de aprender ou que fosse burro, nada disso. Era um azedume que eu tinha cá dentro, uma angústia que me corroía a alma e que evitava que eu sonhasse como antigamente.
Fui trabalhando onde calhava. Fiz um pouco de tudo, até que fui para um talho de carne e aprendi a arte do açougue. Já nessa altura, para afogar as mágoas, bebia mais do que a conta.
Com vinte e poucos anos encontrei uma rapariga que parecia entender a minha solidão. Algumas vezes lhe disse que eu não era futuro para ninguém. Esta minha alma negra, como karma ou carga negativa, haveria de causar infelicidade a quem estivesse à minha volta. Mas ela insistia e dizia que, se eu lutasse, haveria de conquistar a minha legítima felicidade. Estava pronta a ajudar-me. E eu, embarcando nas suas palavras de esperança, fiz-me ao mar da vida e juntámos os nossos corações.
Entretanto ficou grávida e viemos a casar. Arrendámos uma casa e fizemos planos para o nosso bebé. As coisas até estavam a correr bem se não fosse, volta e meia, eu aparecer bêbado em casa. O mais grave é que eu sou daqueles que, sem álcool, sou cordato, sensível e bom amigo. Quando me encharco nos vapores etílicos transformo-me completamente. Passo de um pacífico Panda a um Elefante em fúria. Como não sabia o que fazia, batia-lhe. Até me deixar foi um passo. Um dia peguei numa mala e, sem me despedir, fui para outra cidade. Arrendei um quarto e arranjei emprego numa grande firma de carnes como cortador. Para esquecer a saudade deles e conviver com a solidão dei em beber mais.
Num daqueles dias que temos o mundo em cima dos ombros, num acto de desespero, pequei numa faca e cortei uma das artérias carótidas. Era mesmo para acabar com aquela depressão que me consumia. Mas, talvez porque não quisesse morrer ou mais uma vez o azar estivesse ao meu lado, acabei por ir para o hospital e salvei-me. Foi mais uma partida do destino, tendo em conta que poucos resistem a uma tentativa de suicídio destas. Enfim, se calhar não tinha chegado a minha hora.
Lembro-me, quando estive internado no hospital, tive apenas uma visita do dono de um café que eu frequentava. Foi bom ouvir as suas palavras: “tens de ter força, Eduardo, a vida é uma coisa linda!”. Só quem está só no mundo pode entender o que é receber esta frase numa cama de hospital.
Saí em convalescença. Por vergonha, já não fui para o mesmo quarto arrendado. Não me despedi de ninguém, nem do meu mensageiro da esperança.
Continuei a beber cada vez mais. Eu só queria fugir de mim. Das minhas recordações, dos meus complexos de culpa, da minha imagem, da minha sombra. Por volta de 2005, despedi-me da firma onde trabalhava e fui para o Norte. Lá arranjei um emprego num outro talho. O ambiente de trabalho não era bom. Se calhar apercebiam-se que eu era alcoólico. Veio o fim do mês, não me pagaram. Veio o seguinte a mesma coisa. Comecei a desesperar. Tinha de pagar o quarto onde estava instalado. A senhoria já me estava a marcar o passo. Um dia, encharcado em solidão, sem uma moeda para beber um copo, fui parar a um parque de estacionamento e encostei-me a um Mercedes. Estava envolto em mil labirintos de pensamentos perdidos. De repente veio o dono do carro, puxa por uma moeda de euro e coloca-ma na mão. Perdido na surpresa, ainda tentei argumentar umas primeiras letras. O que saiu foi só…mas. Era o destino mais uma vez a tentar-me. Como um relâmpago que ilumina uma noite de breu, eu vi que “ganhar” dinheiro a arrumar carros era fácil.
No dia seguinte estava a marcar o meu território. Ali passaria a ser o meu “trabalho”. Só que quem entende os humanos? Pelo dinheiro fácil, a cada dia que passava, mais me enterrava pelo cano de esgoto social. Talvez Freud explicasse que para ganhar dinheiro é preciso esforço e é esse zelo que, deixando-nos cansados, nos dá em troca uma sensação de bem-estar.
Até estar a dormir num banco de jardim foi um passo. Olhava para as minhas roupas sujas e para a minha barba por fazer e sentia-me um “Joe Stassio”, personagem de antologia policial de “Ross Pynne”, um escritor português que gostava muito de ler: Roussado Pinto. Só que havia uma diferença, o Joe tinha uma apaixonada que era o seu porto de abrigo. Eu não tinha ninguém. Num eterno retorno, que talvez Nietzsche explicasse, voltei outra vez à cidade onde, outrora, tentara pôr fim à vida. Durante o dia arrumava carros e à noite dormia numa casa abandonada. Quando tinha dinheiro comia, quando tinha menos ia apenas para o álcool. Nunca tinha recebido qualquer apoio financeiro, isso a que chamam RSI, Rendimento Social de Inserção.
Há uns meses, estava arrumar junto à Loja do Cidadão da cidade, foi então que dei de caras com o meu amigo que me foi ver ao hospital. Para além de me apertar a mão, deu-me um abraço. Aquele gesto foi um milagre. Há quantos anos não me apertavam a mão? Também sebento como eu estava, até entendo a repulsa. Fez mais: levou-me à Segurança Social e inscreveu-me –nem documentos eu tinha.
Hoje, estou a viver numa pensão. Vou fazendo pequenos biscates –preciso tanto de um trabalho a tempo inteiro, está difícil, mas penso que muito em breve vai acontecer! Para além disso, estou a fazer uma desintoxicação ao álcool. Estou a começar de novo. Sinto-me uma nova pessoa.
Precisava apenas de encontrar o meu filho Bruno. Dar-lhe um abraço e pedir-lhe perdão pelo mal que lhe fiz. Se não conseguir, jamais me perdoarei.

*TEXTO ESCRITO PARA A "FÁBRICA DE HISTÓRIAS" SOB O MOTE "COMEÇAR DE NOVO".
http://fabricadehistorias.blogs.sapo.pt/42896.html?view=459664#t459664

3 comentários:

Sónia da Veiga disse...

Lindo, como de costume!!!
Não se esqueça de pôr o comentário na Fábrica, que já é tarde!!!

Simbologia do Amor disse...

Caro amigo
Sempre é tempo de recomeçar.
Não se sinta sozinho, nuncz estamos sós mesmo que sozinhos.
Jesus na sua infinita bondade ficou sozinho lembra desta história verdadeira?
Foi como a sua, mas Jesus também nunca esteve sozinho, ele tinha o Pai, aquele em quem ele acreditava.
Portanto, vale a pena começar de novo, vale a pena recomeçar e vale a pena admitir no que erramos para então posteriormente acertar-mos.
Um abraço pode curar.
Nunca desista de você!
E pense que seu sofrimento não é maior do que aquele que Jesus passou.
Então, confie em Jesus e peça à Ele para te abrir as portas.
Se tens fé, você conseguirá e tudo vai dar certo para reencontrar teu filho.
Abraço

Vera

LUIS FERNANDES disse...

Obrigada, Vera. Transmitirei a sua mensagem ao Eduardo. Eu, o Luís Fernandes, limitei-me a escrever a história que me foi transmitida por ele. E também para "puxar" pelo filho, Bruno, para ver se este aparece para dar um abraço ao pai. Tenho acerteza que este abraço seria fundamental para o "ressuscitar" do Eduardo.
Um grande abraço pela força.Passar-lhe-ei a sua mensagem pessoalmente. Pode crer.