sábado, 24 de setembro de 2022

QUADROS SINÓPTICOS: O EXCURSIONISTA





Há mistérios que, por casos e acasos ao longo da vida, pela racionalidade custam a compreender. Claro que se estivesse entre nós poderíamos sempre recorrer a Sigmund Freud, neurologista e psiquiatra austríaco, o pai da psicanálise. Acontece que já nos deixou há cerca de oito décadas e não é possível ter a sua presença. É certo que deixou doutrina, e o que não faltam aí são seguidores do seu saber, mas não é a mesma coisa.

Lembro-me do senhor Ricardino desde os meus tempos escolares, quando frequentei a escola primária, nos primeiros anos da década de 1960 - incluindo o seu nome e a sua imagem fisionómica. Desenvolto no andar, altura média, rosto comprido, “abicado”, onde uns olhos pequeninos, perscrutadores pareciam dois focos de luz na noite escura.

O senhor Ricardino, na altura com trinta e “picos” anos, era proprietário de um pequeno café a cerca de pouco mais de uma centena de metros e na margem da estrada nacional.

Em 1966 parti para Coimbra para trabalhar, onde assentei arraiais e passei os vários anéis do tempo que marcaram para sempre a minha vida.

Durante anos e mais anos até me esquecer de quantos, nunca mais vi o aqui citado dono do antigo café situado à beira da estrada.


I


Bem acompanhado com a minha mulher, há volta de três anos, num eterno retorno às origens, só explicável pela necessidade inconsciente de se voltar ao ponto de onde se partiu um dia em busca de um mundo melhor.

Estávamos em pleno crescimento da pandemia. Começámos a frequentar uma média-superfície na cidade sede-concelhia que vendia comida para fora, em “take-away”.

Sempre que íamos às compras, comecei a ver mesmo ao meu lado um velhote de cabelos brancos, rosto alongado tapado com uma máscara anti-pandémica. Logo ao primeiro olhar, apesar dele estar mascarado por necessidade, um pensamento bateu forte: é o senhor Ricardino! Engraçado, parece que, apesar do enorme peso dos anos e do cabelo totalmente branco, está igual.

Por momentos, apeteceu-me tocar-lhe no ombro e dar-me a conhecer, mas, naqueles pensamentos reflexivos sem explicação e que nos tolhem a vontade, contraí-me por várias vezes. Por um lado, e se ele não se lembrasse de mim? Por outro, por que raio havia eu de ir incomodar o homem?!?

Tendo em conta a sua, para mim, presumível longa idade, era dotado de grande desenvoltura. Ou fosse pelos dois aparelhos nos ouvidos, talvez do século passado, ou pelas calças de “terylene” de vinco à proa e que foram encurtando com o tempo, pensei para comigo que o homem deveria ter mais de oitenta anos de idade.


III


Há uns tempos, pouco mais de dois meses, na Estação Nova, em Coimbra, caminhávamos ao longo da gare, quando de repente fiquei frente-a-frente com o senhor Ricardino – estava acompanhado de uma neta. Eu olhei para ele, ele olhou para mim e levantou levemente o braço como se, hesitando, fosse cumprimentar-me. Eu, embora sentindo o mesmo embaraço, atirei: “conhece-me? Ou não? Da minha parte, já não lhe falo há mais de cinquenta anos, mas aposto consigo que sei o seu nome”.

Ricardino, naquele encontro fortuito, respondendo pela circunstância, lá foi adiantando: “nham… nham”… parece-me que o conheço, sim, mas não sei de onde…

Dando-nos a um reconhecimento de ocasião, de que aldeia vizinha era eu nascido e criado, fiquei a saber que naquele preciso dia comemorava a bonita idade de 95 anos. E, confraternizando, trocámos um forte abraço – como se este gesto significasse também uma espécie de acto de contrição por eu não o ter interpelado mais cedo.


IV


Para cerca de quatro centenas de quilómetros de distância, fomos de férias para longe da nossa aldeia para um empreendimento turístico onde havia mais de uma centena de veraneantes. Quando transpusemos a porta da sala de restaurante a primeira pessoa que vimos foi… o senhor Ricardino, muito bem sentado e a degustar a refeição.

Mal lhe coloquei o braço por cima dos ombros e já ele estava a interrogar: “outra vez? Estás cá também? Andas a seguir-me?” - e abriu uma forte gargalhada.

Enquanto durou o nosso almoço de casal o tema de conversa foi a segurança do nosso vizinho Ricardino. Inevitavelmente, a sobremesa foi a preocupação em indagar como é que um homem de 95 anos estava sozinho a quase quinhentos quilómetros de casa.

Contou-nos, tinha ido de excursão e, tranquilizando-nos, estava muito bem acompanhado – pudemos constatar isso mesmo durante vários dias por parte da técnica de turismo.

Se quase sempre tinha passeios em redor da cidade durante a manhã, à hora do repasto, depois do almoço lá estava ele pronto para irmos beber o café – ou melhor, o seu descafeinado cheio por que o café não o deixava dormir, enfatizava.

À noite a mesma coisa. Ora nos acompanhava para vermos juntos os espectáculos musicais, ora ia connosco dar uma volta curta até ao planalto onde se visionavam as luzes da cidade.

Quando caminhávamos devagar para não o cansar, numa passada forte e cadenciada, ia sempre à nossa frente. Volta e meia interrogava: “não me digam que estão cansados?!? E aqui o velho sou eu…

Outras vezes, deliberadamente, afastava-se uns metros e lá ouvíamos: “pum, pum… pum, pum”. E lá vinha a explicação: “tive de me afastar, desculpem, mas os meus intestinos pregam-me uma partida...

Os seus esquecimentos eram uma constante. Estava a contar uma história dos seus tempos de rapaz; como por lapso de magia o cordão de ligação apagava-se e lá vinha a interrogação: “onde é que eu ia?

Sou muito feliz! Faço o que eu quero. No meu dinheiro e na minha vontade ninguém manda…

Gostava muito de cá andar mais meia-dúzia de anos… mas não sei não...”

Devido ao ouvir mal, tínhamos de falar muito alto e junto a uma das suas orelhas. O tema principal das suas conversas foi sempre o tempo que começava a encurtar. “quero ver se ainda cá venho outra vez, ao menos, mais duas vezes… Vocês vêm para o ano?


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