segunda-feira, 19 de setembro de 2022

QUADROS SINÓPTICOS: O "DANDY"

(imagem de Leonardo Braga Pinheiro)





Estávamos de férias, eu e a minha mulher, num hotel muito afastado da nossa área habitual de conforto e longe da nossa povoação, onde os ruídos que cortam os silêncios prolongados já fazem parte de nós. Uma aldeia é um laboratório sociológico de costumes de antanho e a modernidade contemporânea que nos calha todos os dias.

Diariamente havia animação para os hóspedes da unidade hoteleira. Entrámos na sala destinada às variedades do hotel. Estava repleta, sem uma única mesa livre. De repente, próximo de nós, um homem sozinho, aparentemente nos “sessentas”, da nossa idade, levantou o braço e convidou: “se quiserem, sentem-se aqui, na minha mesa, estou à espera da minha mulher, mas não sei se vem.

Como a justificar-se, continuou o participante, “devemos ser solidários, não faz sentido eu estar só a ocupar um lugar destinado a um grupo de pessoas…

Interrompeu o discurso para, mais uma vez, levantar o braço e convidar outras pessoas para junto de nós. Era um outro casal, um pouco mais velho, talvez na casa dos setenta anos. A mulher, um pouco introspectiva, de rosto fechado, como se carregasse toda a tristeza do mundo, parecia não dar abertura sequer a um simples diálogo de circunstância. Mas, notava-se, era uma senhora bem-formada e requintada, Simplesmente só falava se absolutamente necessário.

Em completa contradição, o marido, sem hipótese de passar desapercebido, era o paradigma da empatia. De sapato branco abicado, calça e camisola igualmente de cor branca e na cabeça um chapéu de abas de tom claro e imaculado. Era um perfeito “dandy” – cavalheiro de presumível bom gosto e de aparente bom-senso, mas que, pelo aspecto abastado, podia não pertencer à classe nobre. É uma imagem construída para impressionar. Como se usasse uma máscara, é uma amostra de intelectual. Com uma obsessão pela classe e, detestando, a vulgaridade, procurando dar nas vistas, tenta elevar-se acima do comum. No oposto ao desejado, contudo, não está livre de provocar sorrisos mordazes e críticas ferozes pela ousadia de querer romper o situacionismo.

Virando-se para mim, à laia de cumprimento, atirou de supetão: “eu sou juiz (jubilado) – e puxou imediatamente de um cartão.

Reparei que era extremamente magro, de rosto quase esquelético. Pensei para mim que devia estar doente – mais tarde fiquei a saber que (aparentemente) estava muito bem de saúde e que, no tocante à inelutável magreza, era uma questão biológica, por mais que comesse, e comia muito bem, não conseguia engordar.

Passados uns minutos, repetiu: “já lhe disse que sou juiz? E já lhe mostrei o cartão?” - e levou a mão ao interior de um dos bolsos das calças.

De forma discreta mas imperativa, a esposa, ao mesmo tempo que lhe pegava no braço, murmurou-lhe baixinho junto ao ouvido: “querido, já mostraste!

A conversa entre todos decorria com cordialidade em torno dos dias da nossa vida. Depois de passar pelo futebol, inevitavelmente, a amável cavaqueira caiu na política partidária, atirou o meu novo amigo: “ já lhe contei que o António, aquele que foi presidente da Câmara Municipal de…, um dia ligou-me a dizer que precisava de falar comigo. Combinámos o encontro. Quando nos reunimos no seu gabinete, arrastando-me para a secretária e pegando no meu braço, ordenou: João, assina aqui. A partir de hoje passas a ser militante do partido…

E continuou a narrativa, “empertiguei-me todo… O quê? Eu não assino nada… Eu quero lá saber disso?!?”. E repetiu: “eu quero lá saber disso?!?”.

De repente, interrompendo em corte, interroga: “eu sou juiz, já lhe disse? E já lhe mostrei o cartão? - e transporta a mão em direcção ao bolso. E novamente a esposa, de forma sub-reptícia e delicada, lhe prende a mão e, junto ao ouvido rumorejou: “já mostraste!



 

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