domingo, 4 de setembro de 2022

O ÚLTIMO OLHAR

 

(imagem de Leonardo Braga Pinheiro)


I

O homem, como guerreiro vencido e regressado recentemente de mais uma campanha na guerra, pelas costas arqueadas e profundas olheiras negras, parecia carregar o globo terrestre sobre os ombros. Já senhor de muitas décadas, talvez mais de sete, como se pretendesse alimentar a alma carecente de carinho e sofregamente pretendesse aspirar o perfume que se libertava do meio envolvente, com um olhar terno e meigo, olhava demoradamente tudo à sua volta. Aquele último olhar era como uma catarse, uma purificação da alma, um acertar de contas consigo mesmo.

Como um ninho vazio, sem passarinhos, incrustado na lapa que, durante o crescimento das aves, resistiu a tudo, aos ataques cerrados dos predadores, aos raios solares de uma manhã de Agosto, ao cair de uma noite gelada de inverno, a casa apresentava-se despida de móveis e mostrando os buracos vazios, as crateras deixadas pelos electro-domésticos que, durante décadas, foram o catalizador efervescente e o refulgir de vida de uma família.

Naquelas cinco divisões, com manchas aqui e ali no imaculado branco e salpicadas por muitos buracos de pregos que aguentaram quadros, pratos antigos e outros objectos mudos, mas cuja presença, como se falassem sem se ouvir, os transformava em mensageiros de um tempo perdido no tempo, de recordações vividas e marcadas a ferro. Cada peça, como uma fotografia paisagística, contava uma história, uma breve passagem, curta, de um passeio ao Norte, uma viagem ao Sul, uma ida e volta de férias quando o miúdo era pequenote. Aqueles exemplares eram, ao mesmo tempo, prémio e castigo, como terço de contas e rosário que, em momentos de aflição, repetidamente se pede uma graça a uma entidade divina. Afinal, mesmo sendo singulares e únicos, não seremos nós partes de um código genético perdido na ancestralidade dos confins do universo?

Na cozinha, os móveis engordorados não enganavam. Durante muitos anos ali viveu um homem sozinho. Aqueles fios ao correr dos veios da madeira de castanho simbolizavam as lágrimas derramadas de um amor estupidamente perdido.

Aqui e ali, como se ficassem intencionalmente abandonados, um ou outro quadro de ponto-cruz, feito à mão, jaziam inertes e pareciam querer transmitir uma implícita mensagem.

Num canto de uma sala, montes de coisas aparentemente sem préstimo, ou que já foram ultrapassados pela sua utilidade. Bem salientes, como se fosse mesmo intenção de dar nas vistas e sub-repticiamente dizer muito mais do que parecia, vários álbuns de fotografias a preto-e branco, a começarem na década de 1970, onde se retratava toda a vivência de uma família em todo o seu ciclo existencial, nascimento, apogeu, declínio e morte anunciada, e a acabar há poucos anos.

Como passarinho pronto a voar e a enfrentar o mundo, o primeiro a sair foi o rapaz, único descendente. Saíra para casar e constituir outra família que, através do óvulo e do espermatozoide, daria continuidade à multiplicação e não deixaria acabar o planeta.

E subitamente, como a serenidade sepulcral que envolve os cemitérios, a casa ficou mais silenciosa e vazia. Os filhos, crianças e adolescentes, com toda a algazarra e preocupações que acarretam são as flores perfumadas do jardim familiar. Como é comum, é profundamente errado pensar-se que, “um dia, quando eles partirem à conquista do mundo”, o casal vai ficar mais unido e com mais tempo para as pequenas coisas. Os filhos, com todas as alegrias, desaires e tristezas e frases como “ai se eu soubesse o que sei hoje”, são o cimento que liga a estrutura de uma casa e a super-estrutura familiar. Sem eles, homem e mulher, o casal embirra e choca-se muito mais. Provavelmente, acontecem muitos mais divórcios já depois da casa semi-vazia do que semi-cheia.


(Continua)

1 comentário:

Anónimo disse...

Bom dia amigo Luis.
Ė preciso acordar com muita inspiração para escrever um texto
com esta qualidade.
Cá ficarei à espera da parte final .
Bem hajas por nos proporcionares estes momentos de leitura .


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