sábado, 17 de setembro de 2022

QUADROS SINÓPTICOS: FÉRIAS DEPOIS DOS SESSENTA

 

(imagem de Leonardo Braga Pinheiro)





Estávamos de férias, eu e a minha mulher, longe do conforto do nosso lar; arredados do mugir mágico de uma cabra, ou ovelha, que, na aldeia, nuns currais afastados teimam em romper o silêncio; afastados dos afagos e do miar do nosso gato; distantes do galo-sentinela, que a par do relógio da capela, sem querer saber se somos velhos ou novos, se já temos a nossa conta no índice de contribuição laboral, alheio a qualquer influência externa, teima em nos acordar para uma madrugadora vida diária.

Estar de repouso para os mais velhos, a partir dos sessenta, a minha geração, não é apenas agarrar a trouxa, deixando tudo para trás como se o que fica pouco contasse, e partir para longe. O ir em gozo de férias é, acima de tudo, um acertar de contas com o passado, onde, nas últimas décadas, quantas vezes ininterruptamente sem descansar, o trabalho foi muito mais do que uma obrigação societária individual e paritária, que deve caber a cada um de nós para ser um cidadão auto-suficiente e ser gerador de riqueza. É o usufruir de um direito que, por juros acumulados lhe deve calhar em dobrado, mesmo com atraso em relação ao tempo presente, numa espécie de catarse, método psicanalítico que consiste em trazer à consciência recordações recalcadas, com orgulho envaidecido, nos julgamos justos merecedores. Não é por mero acaso que num encontro dos agora apelidados de “seniores”, a qualquer momento, possa sair o desabafo: “eu trabalhei muito e duro. Muito mesmo. Nem te passa pela cabeça”.

Para muitos, tantos, tantos que nem se sabe a conta, foi mesmo assim, sobretudo para aqueles que, vindos da miséria cintilante das décadas de 1940/1950/1960, elegeram a pobreza como inimigo a abater. E quem por aqui passou, percorrendo sendas e veredas, e calcou calhaus pontiagudos e arame farpado, sabe que não estou a exagerar.

O descansar um período, ou períodos, durante um ano, é como se estivéssemos a usufruir de uma prerrogativa equitativa, sonhada durante noites sem fim enquanto fomos novos. Ou seja, que, embora com atraso temporal, e exceptuando a proeminente barriga, nos transforma em iguais perante quaisquer outros.

De certo modo é como se, durante a melhor fase da nossa vida, andássemos a adiar para a velhice o que nos dá mais prazer no entretenimento. Deixamos para mais tarde a leitura de centenas de livros que juntámos em acervo bibliotecário; adiamos para as calendas da velhice as viagens para conhecer uma parte do mundo.

Quando lá chegamos, estamos cansados, os ossos, com dores agudas, negam-se a subir a montanha, as receitas médicas e os exames sempre a balouçar perante novas doenças que, como castigo divino, parecem querer correr atrás de nós sem nos largar, a memória, como um filme riscado, começa a falhar, é mais fácil relembrar um acontecimento passado há meio-século do que onde deixámos ontem o carro estacionado na cave da grande superficial comercial.

Para piorar as coisas, o relógio, marcador do tempo, passa a ser nosso inimigo. Contrariamente a nós e à nossa vontade, o maldito trabalha sem se esfalfar.

Se é que alguma vez controlámos alguma coisa, agora, com os dias a encurtar no Inverno da existência, é que sentimos que somos meros peões num jogo a que chamamos vida.

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