terça-feira, 16 de janeiro de 2018

UMA GRANDE ENTREVISTA (JÁ REQUENTADA)

(Imagem de Leonardo braga Pinheiro)




Há cerca de cinco anos fui entrevistado
por um estudante de jornalismo: João Valadão.
Correndo o risco de parecer ridículo,
volto a inserir a entrevista, sobretudo para
recordar que o que era afirmado nessa altura
sobre a Baixa, hoje, tudo continua igual.
Ou seja, mudam-se os tempos, mudam-se
os comerciantes, mudam-se os políticos
-nessa altura geria a cidade a Coligação por
Coimbra, constituída pelo CDS/PSD-, mas
tudo continua igual, para pior, obviamente.


Quem faz o favor de me ler sabe que, habitualmente, só escrevo disparates. Mas como a natureza é boa e equitativa, todos os asnos têm seu momento de resplandecência. Foi o que me aconteceu em Janeiro de 2013 quando o João Valadão, certamente por não ter ninguém mais qualificado, me entrevistou para um trabalho académico. Se quiser fazer o favor de saber o que disse ao João, continue a ler:


GRANDE ENTREVISTA, POR JOÃO VALADÃO


Licenciatura em Jornalismo - Géneros Jornalísticos
Aluno: João Pedro Trigueiros Valadão

As pessoas não estão preparadas para defender o bem comum”

Luís Quintans, proprietário de um antiquário na Baixa de Coimbra, tem-se assumido como um dos cidadãos mais proactivos na defesa desta zona da cidade. É no seu blogue, ‘Questões Nacionais’, que fomenta a sua crítica ao poder autárquico e à inépcia dos cidadãos. Para o comerciante e ‘blogger’, uma cidadania ativa é fundamental para o desenvolvimento sustentável da cidade e a elevação da cidade a património mundial depende da formação dos seus munícipes. Por outro lado, considera que uma maior abertura e cooperação por parte do executivo municipal são urgentes e indispensáveis.
O blogue tem sido fundamental na sua atividade cívica. Quando surgiu?
O blogue surgiu em 2007, da necessidade de eu gostar de escrever. No fundo, foi o preenchimento de uma lacuna. Sempre escrevi, normalmente para os jornais, mas nós para os jornais estávamos sempre condicionados porque umas vezes publicavam e outras vezes não. Quem escreve sabe que, quando tem alguma coisa a dizer, quer ver as coisas publicadas. Foi sempre uma luta que tive com os dois jornais, com o Diário As Beiras e o Diário de Coimbra, porque às vezes não publicavam. Às vezes considerava que era mal tratado, porque para além de escrever eu gosto de intervir. Ou seja, normalmente há dois tipos de escritores (mas eu não sou escritor, digo isto apenas no sentido que escrevo): há aquele que escreve e utiliza a sua escrita para intervir no social, para modificar as coisas, é nessa que me insiro e há outro, dos amores platónicos, que tem uma intervenção através do pensamento, não direta. Sou o primeiro caso, gosto de escrever e intervir socialmente. É um vício que eu tenho.

Tem mantido uma regularidade desde então?

Escrevo todos os dias.

Continua a colaborar com jornais?

Com o Diário de Coimbra e com o Diário As Beiras praticamente cortei, porque acho que me senti mal tratado. Estar sujeito à arbitrariedade deles, umas vezes publicarem e outras não… Entretanto comecei a escrever com outros, com o Jornal da Mealhada durante uns anos e, atualmente, com o Jornal O Despertar. É o único em que colaboro, no sentido de escrever. É o semanário mais antigo de Coimbra, tem 95 anos. Tenho uma página semanal sobre a Baixa, tenho a liberdade para escrever sobre o que quiser, no que incidir sobre esta zona. É o que o blogue procura incidir também, que é a sua área geográfica, se bem que o seu nome Questões Nacionais possa dar a parecer um âmbito muito mais alargado. Procura incidir na minudência, na pequena coisinha, na senhora que caiu e partiu uma perna ou se há um buraco em que a câmara não intervém. Escrevi, há pouco, sobre um candeeiro que tinha os vidros soltos e em que era muito fácil por lá uma escada, retirar os vidros e estava solucionado. Mas os funcionários da câmara colocaram lá umas fitas à volta, quando aquilo era uma coisa fácil de resolver. No fundo, escrevo sobre a inépcia dos outros, se bem que as minhas também são enormes.

Acha que uma cidadania ativa contribui para um desenvolvimento sustentável?

Eu escrevo sobre isso todos os dias e é uma luta completamente perdida. Vou-lhe dar outra vez o mesmo exemplo: o candeeiro, junto às escadas de Santiago, foi abalado por um temporal. Eu escrevi no meu blogue o que se tinha passado, os estragos mais relevantes que notei. Os serviços da câmara foram lá e puseram fitas à volta do candeeiro, a abarcar grande área das escadas e aquilo lá ficou. Note-se que estamos a falar de uma área geográfica que é candidata a património mundial da UNESCO, não estamos a falar da nossa aldeia, em que ninguém lá vai! Estamos a falar de uma zona fulcral que é a Praça do Comércio, zona monumental, e a Baixa tem pelo menos seis instituições que se debruçam sobre os seus problemas.
Na altura fui ao Gabinete do Centro Histórico, no Arco da Almedina e as pessoas olharam-me com uma cara de “o que é que este parvo vem para aqui fazer?”. Mas como eu tenho alguma convicção, passei isso à frente e consegui que me ligassem a outro gabinete.

Tem algum feedback junto da câmara?

Não tenho grande feedback. Eu escrevo muito sobre o que se passa aqui na Baixa e envio quase sempre tudo para o correio electrónico da câmara. Aqueles [correios eletrónicos] que tenho acesso, mando sempre. Normalmente, poucas vezes me dão resposta. Noto que eles me conhecem, isso noto. Vou muitas vezes à câmara, sempre que tenho possibilidade de intervir. Intervenho algumas vezes na assembleia municipal, quando acho que devo ir. Quando estes meios não funcionam vou lá pessoalmente. Não sei como a câmara reconhece a minha intervenção, como uma pessoa que se interessa ou como “aquele que vem chatear”.

Sente desconforto?

Não sinto desconforto, porque rio-me de mim próprio. Rio-me, quase, destas coisas. Considero que é uma parvoíce como outra qualquer, podia ocupar-me de outra coisa, ocupo-me disto.

Considera que há uma falta de abertura por parte da Câmara Municipal de Coimbra para os cidadãos?

Completamente. Não somos maltratados, tenho de ser honesto, nunca fui incomodado por ser assim. Tenho escrito muitas coisas a denunciar situações limite, que quase poderiam ser, hipoteticamente, passíveis de uma ação de difamação. Andei em direito e sei alguns dos princípios, tenho algum cuidado com o que escrevo. Quando escrevo a denunciar situações são sempre passiveis de difamação da outra parte. Até agora nunca tive isso por parte da câmara. Nunca senti nenhuma espécie de perseguição pela outra parte, pelo contrário. Não senti amizade da parte deles, mas sempre senti respeito pelo meu trabalho. Agora, a câmara devia intervir, devia apoiar outras pessoas como eu. Há mais pessoas assim, sobretudo quem escreve e tem blogues. O mínimo que a câmara poderia fazer era responder, às vezes fazem-no, mas muito raramente. A senhora vereadora da cultura nunca me responde. Uma vez estive num debate e disse-lhe que nunca me respondia. Ao que ela respondeu: “o senhor mandou [uma mensagem]?”. Disse-lhe que também tinha publicado n’ O Despertar e veja a resposta: “nunca ligo ao que os jornais dizem”. Isto é o cúmulo.

O facto de não responderem poderá estar relacionado com falta de argumentos de defesa?

Não acho que seja uma falta de argumentos de defesa, acho que este poder está assente em falsos valores. Era preciso uma nova filosofia, entender que o poder em si tem que servir para servir. O poder conquistado nos votos, ou de outra forma qualquer, tem que servir para servir o próximo, quem nos rodeia. O poder local deveria servir para resolver os problemas dos seus cidadãos, dos seus munícipes. Na minha perspetiva acontece o contrário, ao conquistarem o poder fecham-se, tomam-se de uma importância que não têm. Depois saem de lá e no mundo da rua já são comuns, como se descessem de um pedestal. Aí já nos cumprimentam, mas quando estão na câmara isso pode já não acontecer.

Participa em alguma organização de defesa da Baixa?

Não. Sou associado da Agência de Promoção da Baixa de Coimbra, uma agência de humanização da Baixa. Sou associado, como qualquer comerciante, não tenho algum cargo para além disso. Isto de intervir faço-o apenas por gosto. Muitas vezes pergunto-me porque faço isto. Primeiro, é porque gosto de escrever e faço-o muito facilmente. Penso que os talentos devem ser postos ao serviço da comunidade. Raramente escrevo sobre mim ou sobre o meu negócio no meu blogue. Sobre mim, as coisas estão lá, mas tento de por de lado a vaidade.

Como acha que a Câmara Municipal de Coimbra tem gerido a Baixa?

Não sou partidário político, faço política no sentido da polis. Faço-a no sentido de a defender, não estou ligado a nenhuma organização partidária e estou convencido que nunca estarei. Sou um independente, não há ninguém independente digamos. Às vezes defendo umas coisas de direita, às vezes de esquerda, é o que calha. Depende da minha linha de pensamento, tento reger-me por isso e não pelo que os outros pensam. Portanto, acho que seja este executivo, como os anteriores, nunca se interessaram minimamente pela Baixa. Não tenhamos ilusões. Temos que ser honestos, as câmaras não podem fazer muita coisa, pelo menos mexer muito nos centros históricos. Nomeadamente porque um dos maiores cancros dos centros históricos são os regimes de arrendamento urbano. Até aqui têm estado limitados devido a isso. Fez-se agora uma alteração do regime de arrendamento urbano, mas se calhar é pior a emenda que o soneto. Têm feito isto de forma abandalhada, sem ter em conta as necessidades das pessoas, que estão num momento muito frágil da sua vida. Isto vai levar mais à miséria, porque as pessoas não têm meios, estou a falar do arrendamento urbano e comercial. As pessoas não podem pagar rendas excessivas quando o rendimento do comércio e dos particulares está em decréscimo. Por outro lado, a insensibilidade de quem está à frente dos executivos municipais tem levado a que se licencie tudo o que são grandes superfícies.
O regime de arrendamento urbano tem sido uma lástima desde o início da Primeira República, desde 1910 que isto foi um problema. Os partidos políticos sempre usaram os regimes de arrendamento urbano para se beneficiarem eles próprios através do voto. Por outro lado, a partir de 1990 a câmara tem feito licenciamentos desbragados.
A câmara tem tido políticas negativas em pequenas coisas. À noite, na Baixa, muitas vezes não há luz. Isto porque desapareceram os reclames publicitários, porque as taxas que incidem sobre eles tem sido qualquer coisa de imensurável. As lojas há trinta anos tinham néones, mas estas ‘cabeças pensantes’ acharam que estes não podiam estar nos centros históricos. É inconcebível. Porque é que um néon, que dá cor ao meio e o projeta, não é compatível com um centro histórico? As lojas, como também têm que poupar na luz, fecham as montras. As ruas são um deserto sem luz. As câmaras não têm tido nenhuma intervenção nos centros históricos.

Isto deve-se a uma constante falta de organização ou prende-se com a conjuntura atual?

Não, a conjuntura atual é apenas mais um precipício no meio de tantos outros. O problema da decrepitude da Baixa começou em 1993, quando abriu o Continente e a Makro. Começou aí, porque quando as grandes superfícies começaram a surgir, as pessoas começaram a deslocalizar-se da Baixa para esses centros. Na compra e, também, na habitação. A habitação na Baixa sempre foi muito decrépita, insalubre quase, com poucas condições de bem-estar. Então, onde as grandes superfícies montaram as suas estruturas, criaram-se novas zonas de habitação e novas centralidades. Houve uma descentralização daquele habitante com mais poder económico. Para os habitantes com menos poder económico a câmara criou bairros de habitação social fora da cidade. Com essas medidas esvaziaram o centro histórico, está vazio de pessoas que cá moravam e de compradores. Eles deslocaram-se para as grandes áreas. Como isto é um processo contínuo, desaparecendo pessoas, a Baixa torna-se mais insegura e desaparecendo compradores, o comércio torna-se fraco. As pessoas não vêm porque não há oferta, não há aqui uma loja de marca. Livraria e lojas de artigos para computador são poucas, há ramos que estão a desaparecer sistematicamente daqui. Tudo isso conflui numa nova oferta e maior empobrecimento e esvaziamento desta zona da cidade.

Qual será a tendência para as lojas como a sua?

A tendência é para fechar, porque neste momento a procura está completamente em queda e em contração. Como não há procura, vende-se pouco. É muito difícil aguentar porque os custos são muito grandes, nomeadamente com rendas. A oferta destas lojas vai ser cada vez menor e as alterações fiscais vão também mexer muito com as feiras, onde as pessoas querem vender as suas coisas. Se as obrigações fiscais forem muito grandes, as pessoas nem tentam. Ao não tentarem está-se a limitar a liberdade de nascimentos. A lei tem que ser flexível, não pode ser uma tábua onde as pessoas a seguem à letra. Tem de haver uma interpretação, na medida em que cada caso é um caso.

A situação está a tornar-se irreversível?

Não acho que nada seja irreversível. Tudo é reversível, é preciso é vontade humana para fazer essa reversão. O que acontece aqui com este poder autárquico, e com outros que virão, é que isso não é possível. Era preciso de boa vontade, nas assembleias municipais deviam estar pessoas que representassem os seus lugares, mas sem ganhar nada. Os presidentes das Juntas de Freguesia, antes do 25 de Abril, não ganhavam nada. Eram eleitos pelo prazer de servir o próximo. Deviam-se eleger pessoas capazes de defender a sua rua, o seu bairro. Enquanto se elegerem pessoas por interesses próprios, no sentido de lucro, não há hipóteses nenhumas. As pessoas não estão preparadas para defender o bem-comum.

A Baixa está preparada para a candidatura para Património Mundial da UNESCO?

Pessoalmente não acho. Antes de se investir numa classificação, devia se investir na formação. Podemos ter muitos títulos, podemos ser doutorados, mas o que interessa sem não houver a consciência das fragilidades para o qual se está vocacionado? Dentro dessa vocação há que fazer cada vez mais. As classificações são importantes, não há dúvida, mas é preciso apostar na formação das pessoas. Diariamente as pessoas põem o lixo fora de casa a qualquer hora, escrevo muitas vezes sobre isso. A educação dá-se quando se é criança, é possível uma formação de aperfeiçoamento, mas ninguém se importa. Acontece que vamos ter uma classificação, mas os procedimentos continuam a ser os mesmos. Os proprietários não têm dinheiro para restaurar os prédios, os particulares que moram por aí têm um vidro partido da janela, não o mudam, por exemplo. Isto tem que mudar, classificar uma zona de património com interesse mundial é importante, mas estão a fazer tudo ao contrário.
Isto remete de novo para a questão da cidadania.
A cidadania não nasce connosco. A sensibilidade nasce connosco e está ligada à cidadania, mas esta desperta-se. É preciso despertar as pessoas, ajudar o próximo. É uma questão lógica, se eu ajudar o vizinho, ele amanhã ajuda-me. É preciso incutir nas pessoas que é preciso intervir no nosso bairro, onde moramos. Se fosse possível formar um bloco de defesa de uma rua ou de um bairro, nós certamente seremos mais felizes. Por outro lado, era preciso que quem está no poder nos olhasse com outros olhos. Com olhos de camarada, no sentido de estarmos do mesmo lado. Sinto muitas vezes o contrário. Uma vez estava a tirar uma fotografia a uma obra e um fiscal da câmara perguntou-me ao que se devia. Perguntei-lhe porque estava a embirrar comigo, expliquei-lhe quem era e disse-lhe que estava a tirar uma fotografia a um ato público. No fundo, estava a noticiar um ato público e ele era um interveniente. Apertei-lhe a mão e disse-lhe que estávamos do mesmo lado, ele pediu-me desculpa por ter sido mal interpretado. Deu-se uma reversão [do comportamento]. A denúncia, para mim, é sinónimo de dar a cara. Sou completamente contra denúncias anónimas, o Estado nem devia aceita-las, num Estado democrático não devia ser assim. Quem exerce o poder devia olhar para as denúncias identificadas como uma pessoa que quer ajudar, mas isso não tem sido feito.

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