sábado, 27 de janeiro de 2018

EDITORIAL: FAZER OU NÃO FAZER? UMA QUESTÃO A PENSAR?





Outra vez? Relaxado de uma figa! Estás lixado!
Desta vez não vou mexer um dedo para escrever
seja o que for! Vais ter de te desenrascar sozinho.


BAIXA: O HOMEM DO CARTAZ AO PEITO
25/01/2018, 3 comentários
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Foi há uns quatro ou cinco dias que me apercebi que o Luís Cortês, um músico que actua na rua e muito conhecido na Baixa, trazia um cartaz pendurado ao pescoço que anunciava o seguinte: “Tenho órgão avariado. Preciso dinheiro para comer”
Não era a primeira vez que vira um apelo igual no Cortez. Nos últimos cinco anos foram pelo menos quatro vezes. E, perante a mesma situação, sem pensar muito, eu sempre agira em conformidade, isto é, com a melhor entrega numa prosa rebuscada que tocasse o coração dos leitores, escrevendo para o mundo, dei a conhecer a necessidade do músico invisual. E já lá vão cinco órgãos desaparecidos ou destruídos e substituídos nos mesmos moldes: ou pelo desleixo de ter permitido o seu roubo junto à Igreja de Santa Cruz, não cuidando devidamente da guarda de uma peça instrumental que é essencial para angariar o seu pão no dia-a-dia, ou por avaria deliberada, deixando o instrumento muitas vezes à chuva de inverno e sol de verão.
Em solilóquio, quando me apercebi do cartaz pendurado no pescoço o meu primeiro pensamento foi: outra vez? Relaxado de uma figa! Estás lixado! Desta vez não vou mexer um dedo para escrever seja o que for! Vais ter de te desenrascar sozinho. E fiquei a remoer o assunto.
Como um Cristo a passear a cruz às costas, o homem continuava a passear-se pelas ruas da Baixa. Para além de mais, tal como noutras vezes a exasperar-me, o Cortez, como se soubesse antecipadamente que alguém se vai condoer da sua situação e intervir a seu favor, numa forma quase provocatória, nunca suplica. Isto irrita qualquer beato. É da psicologia social, qualquer um de nós, perante um pungente apelo faz tudo para ajudar. E quanto maior for o choradinho para justificar o pedido -e então se for humilhante para quem pede ainda melhor-, mesmo que saibamos antecipadamente ser patranha, dobrada é a possibilidade de realização. Dividido entre sentimentos de sadismo e bondade, entre a superioridade e a fragilidade, entre a caridade e a caridadezinha, há qualquer coisa dentro de nós que nos impele a fazer o bem. Ajudar alguém conforta a alma numa espiritualidade de purificação e remete-nos para uma viagem transcendental entre remorso e acerto de contas com o passado.
Ora, como se fosse uma agressão deliberada aos costumes sociais, o Luís, como é seu hábito, apesar de falar com sons arrastados de fadista, não tartamudeia. Como se funcionasse em autodefesa, fazendo das fraquezas forças, fazendo de conta que está na mó-de-cima, não se queixa, nem diz nada. E é claro que isto deixa uma pessoa fora de si, mesmo sendo candidato a santinho. E mentalmente, com toda a minha razão imaculada, ponderação e justeza de anjo-serafim, em sentença sumária, condenei-o ao ostracismo da indiferença.

A CONSCIÊNCIA É TRAMADA

Como se quisesse espicaçar-me, dava de caras com o raio do homem diariamente. E iniciei um inventário mental de razões para intervir a seu favor. Como se tivesse uma folha dividida a meio com defeitos e virtudes, comecei a apontar. No negativo:
-É desleixado, não cuidando dos seus bens;
-Nunca pede o que precisa nem agradece o bem que lhe fazem;
-Quando bebe uns copos maltrata quem não devia;
-Vê-lo embriagado gera em nós um sentimento de arrependimento por lhe fazer bem;
-É um pródigo; gasta tudo sem poupar e sem lembrar o dia de amanhã;
-Faz-nos sentir usados.
E passei a elencar a virtudes positivas:
-É um bom músico. Com a sua presença, a cantar e a encantar, alegra todo o meio envolvente. A sua frequência de animação funciona como um candeeiro que ilumina tudo em seu redor.

Reparei então que, como atributo, só lhe reconhecia a qualidade de bom músico e animador dos nossos dias taciturnos. Nem sempre o silêncio é boa companhia. A ser assim, estava de ver que não devia, mais uma vez, ampliar o seu apelo, Não é assim? Não, não é! Deixando cair as vulnerabilidades do homem e elevando a sua função de artista social, acabei a escrever novamente uma crónica. E mais uma vez os leitores, talvez por sentirem o seu valor, sobretudo em prole do colectivo, responderam à chamada. Entre mais de 13700 visionamentos nestes dois dias, há várias ofertas de comparticipação monetária e de vários órgãos usados -neste caso, pelo que ficou escrito, embora seja um acto de vontade individual, pedimos o favor de lhe ser entregue apenas um, os outros ficarão para outra próxima oportunidade, que, diga-se, não deve tardar.

O CERTO E O SEU CONTRÁRIO

Entre os vários comentários recebidos, como se calcula, ressaltam opiniões como esta, de um meu amigo: “Prosa poética meu caro! E quanto ao órgão... Menos vinho e mais “poipança”. Estamos conversados
Pelo que ficou plasmado, acabo por concordar com eles. Porém há razões que a própria razão desconhece e o intelecto acaba por ser transcendido. Num conflito individual entre o agir ou não agir, fazer, por razões humanitárias, desvalorizando os defeitos do outro, separando o homem, enquanto pessoa singular de atributos e imperfeições, e a sua função social, porquanto elemento agregado e agregador de uma comunidade -embora se compreenda ser difícil de desligar a sua relação de continuidade- e o não fazer, numa questão existencial, o que deve prevalecer?
Tenho para mim que a resposta é óbvia: devemos fazer! Enquanto donos de um raciocínio lógico e seres de bom-senso, devemos ser proactivos e tentar ajudar quem não foi bafejado com este dom natural. E porquê? Porque se entrarmos num sistema de exame consideratório de remuneração em função da reciprocidade, mais que certo, acabamos por fazer tudo por obrigação em função da semelhança. Ou seja, como defendia Durkheim -1858-1917-, o pai da sociologia moderna, regredindo para as sociedades primitivas ou em sub-desenvolvimento, transformamo-nos em seres mecânicos, porque diferimos pouco entre nós, com o mesmo pensamento. Comungando dos mesmos interesses, numa cultura pouco dinâmica, passamos a defender os mesmos valores, incluindo o sagrado e o profano. Sem pensamento crítico, o contestatário é olhado pela maioria com desconfiança.
No entanto, admito, haverá tantos defensores desta tese e o seu contrário quantas cabeças pensantes.
Vale a pena pensar?

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