sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

DEUSES E DEMÓNIOS MERCANTIS






Escrevi esta crónica em 16 de Maio de 2012.
Correndo o risco de cair no ridículo pela auto-citação,
pela actualidade, volto a publicá-la.
Curioso o facto de a pessoa que fez o comentário mais
abaixo, a azul, depois de lhe responder à letra, cortou
relações comigo. Ou seja, tudo igual aos dias que
correm. Quem discordar do pensamento único e plasmado
pela maioria, no máximo é insultado e no mínimo vai para
o “Index”.

Permita-me discordar de alguns pontos. É certo que o pequeno comércio ficou abalado com as grandes superfícies, é certo que a crise agora é desculpa para tudo e acredito que tem afetado mais uns do que outros. No entanto, o comércio tradicional, e neste caso o da baixinha, tem sofrido mais devido a tacanhez de alguns comerciantes. Ainda hoje constatei isso, quando quis ir comprar uns sapatos e encontrei muitas e muitas lojas encerradas à hora de almoço, quando a maioria das pessoas é a essa hora que aproveitam para fazer as suas compras. Fiquei igualmente desapontada quando entrei numa loja e passado uns minutos a senhora desligou as luzes e disse que reabriam as 15h00. E noutras situações, fui quase que "maltratada" quando devia ser o oposto. Ainda sou das pessoas que gosto de fazer as compras na Baixa, sou "fiel" a algumas lojas na Baixa pela simpatia de atendimento, pelo facto de saber que estão abertas à hora de almoço e por muitos outros motivos. Ora é claro que por causa de uns pagam outros comerciantes que se esforçam, que lutam por aquilo que é deles. Portanto, não creio que devemos atirar as culpas à autarquia, ou o executivo. A culpa é na sua maioria dos comerciantes. Tenho pena que esta loja, há tantos anos instalada na Baixa, e que acho que até há pouco estava aberta à hora de almoço, tenha fechado, mas duma forma geral a culpa das vendas não serem as desejadas é muito por causa dos comerciantes, ou pelo menos de alguns que estão sempre à espera que façam alguma coisa por aquilo que é deles. Calhando o que a Baixa precisa é duma reciclagem de alguns comerciantes. Bem-haja!”
(Funcionária pública)


Vamos lá ver se consigo fazer de advogado do diabo. Começo por te dizer, cara amiga, que, a meu ver, tens razão quanto à rigidez dos horários comerciais na Baixa. Na parte que me toca, e não estou sozinho nesta questão de alargamento, há cerca de um ano e meio, corri as lojas todas para tentar que todos abríssemos ao Sábado à tarde. De um universo de 500 estabelecimentos, no primeiro dia estiveram abertos 60, no segundo à volta de 40 e nos seguintes e, tal como hoje, há volta de uma vintena.
No meu modo de ver, nesta inamovibilidade, nesta prisão a velhos conceitos, reside o verdadeiro “calcanhar de Aquiles” dos homens do comércio. Ou seja, como é que se pode transmitir à opinião pública uma situação de aflição de uma classe se a maioria não mostra querer esforçar-se para mudar e conseguir novos clientes. E então, perante esta rigidez, parecendo que estão todos bem, as pessoas pensam da mesma forma que tu pensas.
Porém há questões de pormenor que temos de interrogar:

-Por que razão procede assim a maioria dos comerciantes?
-Há ou não, de facto, situações de grande miséria no comércio?
-Serão os comerciantes os grandes causadores desta situação?
-Serão as autarquias culpadas da crise no comércio?

Vou tentar responder à primeira pergunta: por que razão procede assim a maioria dos comerciantes?

É assim: hoje o universo comercial é um arquipélago de várias ilhas. Há umas maiores que, quer por herança, quer porque a seu tempo, souberam apostar no imobiliário e, como recebem várias rendas, estão muito bem. Alguns destes, poucos, embora tenham várias lojas encerradas, ainda detêm um ou outro estabelecimento aberto na Baixa, mas como não estão dependentes do que se vende diariamente aqui pouco lhes importa o movimento. Alguns têm lojas nos centros comerciais. Falar com estas pessoas para alargarem os horários nem vale a pena. Para eles a Baixa é uma espécie de gueto que não interessa ao menino Jesus. É muito provável que se o comércio continuar a cair, dentro de pouco tempo, encerrem tudo de vez por aqui.

A seguir vêm umas ilhotas sem grande significado, mas cujo espaço é deles, na maioria dos casos por herança, portanto não pagam renda. Como nunca se atiraram em grandes empreendimentos, porque nunca precisaram, hoje estão sem dívidas e muito bem de vida. Esforçam-se, sim, mas apenas no horário convencionado. Convencê-los a irem mais além é impossível. Jamais!

A seguir vem uma ilhota mais pequena formada por velhos comerciantes que partiram do nada e, ao longo das décadas, foram subindo a corda a pulso com muita dificuldade. Compraram o prédio onde detêm os estabelecimentos e ainda hoje o estão a pagar ao banco. Alguns deles embarcaram no “canto da sereia” do Procom, programa de ajuda ao comércio, em 1996 e anos seguintes, e hoje estão completamente aflitos. Para comprarem as suas colecções, utilizavam contas caucionadas de valores médios na ordem dos 40 mil euros. Como nos últimos dois anos a procura caiu, os bancos, vendo a probabilidade de mais um incobrável, hipotecaram o património destes mercadores e hoje, estes, têm um garrote no pescoço e em vias de perderem tudo –este é a principal causa de insolvências na Baixa. Como já estão muito debilitados físico e psicologicamente e sem qualquer esperança no futuro, também não é possível contar com eles. Esta é a geração mais maltratada do comércio. Alguns deles estão a passar muito mal, com dificuldades em comprar medicamentos, por exemplo.

Depois umas ilhas pequenas, sem património, sem dinheiro e sem crédito, cujo rendimento da loja é o seu único sustento –porém estão a pagar uma renda exorbitante. É tudo calculado ao milímetro. A água que se gasta, a luz da montra. Já há muito que não detêm multibanco para não pagarem as elevadas taxas. Estas pessoas, embora não se lhes dê valor, são verdadeiros heróis contorcionistas a tentarem um equilíbrio impossível para trazerem a cabeça erguida. Não alinham no alargamento de horários para não aumentarem as suas despesas. Estão mesmo no limite e em muitos casos já estão a passar mal em casa.

Passando à segunda questão, há ou não, de facto, situações de grande miséria no comércio?

Embora já tivesse respondido em cima, reitero que sim. Há muitos, mas mesmo muitos profissionais a passarem mal.

Passando a outra interrogação: serão os comerciantes os grandes causadores desta situação?

Antes de prosseguir, vou começar com uma pergunta: serão os funcionários públicos os causadores das próximas rescisões contratuais e actuais cortes nos subsídios?
Por aqui já vemos que culpar os comerciantes pela actual crise comercial é falacioso, gratuito e até ofensivo. Os problemas do comércio tradicional nas cidades radicam em vários factores, sem ordem de prioridade:

-Elevada oferta (dentro do próprio meio, com demasiadas lojas);
-Descentralização e esvaziamento dos centros urbanos;
-Abertura de muitos pontos de venda em vilas e cidades limítrofes;
-Alteração profunda dos costumes; a não identificação dos jovens com o comércio tradicional;
-Envelhecimento do cliente-modelo do comércio de rua e não renovado pelos filhos, que passaram a ser atraídos pelas grandes mecas do consumo;
-Abandono de políticas de revitalização predial por parte das autarquias;
-Políticas governamentais de arrendamento criminosas nos últimos 38 anos;
-Abertura desmesurada de grandes áreas comerciais em torno da cidade, com maior possibilidade de escolha e, em alguns casos, melhores preços –estes impossíveis de praticar num pequeno negócio;
-Oferta de estacionamento gratuito nas grandes superfícies –impossível de competir nesta gratuitidade nas grandes cidades;
-Políticas comerciais agressivas, de "terra queimada", com recurso a”dumping", no grande comércio e visando destruir o pequeno;
-Grande investida do comércio electrónico;
-Desmantelamento da produção nacional, o que tem obrigado a não haver grande escolha e todos venderem “made in China”, com a agravante de não poderem competir em preços com as grandes cadeias;
-Embaratecimento brutal no vestuário e no calçado, sobretudo na última década, diminuindo os lucros nas vendas;
-Deslocalização de serviços administrativos para a periferia;
-Transferência de residentes pobres para bairros económicos dos arrabaldes;
-Crise estrutural (interna) a partir de 2002, com a procura a cair vertiginosamente e esmagamento das margens de lucro;
-Crise conjuntural (mundial) a partir de 2008, verificando-se uma deflação acentuada no vestuário, sapatos, artigos decorativos e outros, levando à falência em barda de pequenas e médias empresas.

E última pergunta: Serão as autarquias culpadas da crise no comércio?

Ora bem, embora já tivesse respondido em parte em cima, sempre vou adiantando que as autarquias também fazem parte do problema. Nos últimos 20 anos, para mostrarem obra aos eleitores, os executivos, na maioria dos casos, a troco de umas piscinas, uns pavilhões multiusos, umas rotundas e mais uns acessos, alteraram os PDM’s para permitirem a instalação de grandes áreas comerciais. Sem terem em conta o impacto no equilíbrio de oferta, entregaram o comércio tradicional numa bandeja de latão. Supõe-se que, enquanto as obrigações para o comércio de rua nos últimos anos têm aumentado, para estas grandes superfícies, pelo contrário, continuarão a ser largamente beneficiadas.

1 comentário:

Anónimo disse...

Portanto, de 500, ao sábado à tarde, estão abertos 20. Não entendi, no meio da confusão, qual a percentagem dos 500 que não abrem porque não podem abrir mesmo, por dificuldades várias. Digo eu que os que podiam abrir (muitos, poucos?...), criariam outra dinâmica na baixa, mais atracção, o que beneficiaria os que não podem abrir mesmo (afinal, quantos?). Mas, claro, a culpa é do governo, da câmara, dos clientes que não acarinham os comerciantes, do são pedro e da rainha santa. Há de tudo. Já vi comerciantes culparem a falta de estacionamento. Eu acho que não há cidade neste país com tanto estacionamento, milhares de lugares, mesmo na baixa, ao preço de um café ao preço antigo. Mas isto sou eu, um cliente com maus figados e má vontade.