(IMAGEM DA WEB)
Era miúdo quando fui trabalhar para o senhor João,
tinha terminado a escola, há pouco mais de um mês,
era tão pequeno e magro, que mal chegava ao balcão,
na mercearia fina, eu era grosso, era só um camponês;
Para cortar o bacalhau em pedaços subia num alqueirão,
se olhasse para as mamas da dona Lurdinhas, em viuvez,
levava um “caldaço”, uma canelada, do meu patrão,
fui crescendo, aprendi, afinal como qualquer português;
Por vontade do dono, comecei a namorar a criada Anunciação,
ai que mulher! Quando me lembro dela, na sua seminudez,
tenho vontade de voltar atrás e abraçá-la com força de paixão,
mas o destino não quis, sei lá porquê, talvez capricho, estupidez;
Trocou as voltas ao senhor João, contrariou tudo, em humilhação,
como não tinha filhos, queria assegurar o futuro de nós os três,
mas a vida é mesmo assim, não se manda no amor, nem no coração,
embeicei-me por uma “mulheraça”, muito bela, filha de um freguês;
Para além do merceeiro, também o pai da miúda ficou em desolação,
mas quando se é jovem, não se pensa de acordo, eu gostava da Inês,
casámos, veio o primeiro filho, o Manelzinho, uma criança de algodão,
o tempo, esse relógio que não pára, marcou o tendeiro em surdez;
Depressa tomei a mercearia no bairro, e de empregado passei a patrão,
trabalhei noites a fio, não tinha feriados, e até esqueci a minha timidez,
quase sem dormir, fazia tudo para enriquecer e vencer a preocupação;
não tinha vagar para o Manelzinho, mas as finanças já tinham solidez;
Comprei uma vivenda como sempre sonhei em noites longas de solidão,
o negócio ia de vento em popa, já pensava abrir outra loja no Marquês,
Manelzinho entrou na faculdade, e de contente, comprei-lhe um carrão,
estranhava o rapaz andar sempre na noite, não estudar, e ser um maltês;
Demorou a passar do primeiro ano, mas isso até nunca me causou apreensão,
apanhava pielas, era normal nesta juventude, tão igual como jogar xadrez,
abriu o primeiro Continente, levou-me parte da clientela, não vi aflição,
nasceu a Makro, continuei descansado, o Sol é para todos sem escassez;
Abriram mais lojas, muitas bugigangas, em todas elas se falava Cantão,
veio o Governo, tirou-me o tapete, fiquei sem trespasse, serei português?
O centro da cidade ficou vazio, passei a estar à porta da loja, já pobretão,
Manelzinho, finalmente formado, não tem emprego, ganhou malcriadez;
A minha mulher, tão querida, outrora tão bela, está velhota, perdeu a razão,
acusa-me de tudo, até de não conseguir prever o futuro, e não ter sensatez,
já vendi a casa, perdi a alma, estou na falência, já não tenho coração,
não sei o que fazer neste mundo do dinheiro, já não tenho liquidez;
Eu sempre fui ateu, deixei de acreditar no homem, agora sou cristão,
tiraram-me tudo, já nada me resta, vou para a China, quero ser chinês,
já não tenho escrúpulos, até os valores me roubaram, já sou só ladrão,
olho para trás, não vejo nada, sou o que resta de um comerciante português.
2 comentários:
Gostei,Luis.Espero,ansioso,pela continuação.
Sem ser original mas bem estruturada a ideia da apresentação do texto(porra,até pareço um critico a escrever!).Engraçado,também,que todos nós conhecemos e nos revi-mos nesta personagem e no sr.joão.
Abraço,m
Não pára de nos surpreender a brincar com as palavras,o amigo Luís!È impressão minha ou ontem o texto do «Sr.Ventura» não estava exactamente como o li agora mesmo?
Marco
Enviar um comentário