Hoje, logo de manhã, o Geraldo, um sem-abrigo que percorre as ruas da Baixa com um potente vozeirão -e que já falei dele aqui-, veio ter comigo. O seu habitual estado de homem corpulento e aparente boa saúde deu lugar a uma pessoa de andar débil e a tremer como cana verde, com maior intensidade num dos braços. Com voz rouca e um pouco arrastada, soletrou: “ajude-me!”. Disse-me que “neste fim-de-semana teve um ataque de coração” –e leva a mão até ao peito. Contou-me ainda que esteve no hospital e depois o mandaram embora.
Pergunto-lhe onde está a dormir, responde-me “que na rua. Ali para os lados da Rodoviária”. Interrogo-o se quer ir para um local onde possa comer e dormir e que lhe dêem os medicamentos de que precisa para continuar a viver. Começa por me dizer que sim. Ligo para os serviços de emergência Social, para ver se nos recebem e para poder tratar do seu processo. Dizem-me que sim. O Geraldo começa a titubear, “mas eu gosto de andar na rua. Eu gosto de tocar flauta. Eu não sei onde deixei os meus sacos! Às tantas vou para lá e depois já não me deixam andar por aqui. Tenho de lá estar todo dia!”. Respondi que sim, que se ele queria viver mais uns anos e ter onde comer e dormir teria de cumprir regras. É assim. Sem disciplina nada feito. O Geraldo, perante o medo de perder a sua liberdade, já não foi. De qualquer modo, em jeito de lavar a consciência, ainda lhe disse que pensasse e se decidisse em contrário que viesse ter comigo. Não sei se virá ou não. Uma coisa tenho certa, provavelmente, no estado em que está, acabará morto por aí em qualquer valeta. Mas o que é que se pode fazer? Perante a actual lei de saúde mental, sem a sua anuência não é possível fazer nada. E o Geraldo lá foi sozinho porta fora.
Ainda durante a manhã encontrei uma pessoa amiga. Estava nervosa, por entre socalcos de sons saídos em catadupa, lá me foi dizendo que tinha acabado de presenciar um assalto de esticão ocorrido hoje na cidade, e que até tinha visto bem a cara do assaltante. “Ai, tive tanta pena da senhora! Até me apeteceu ir dizer-lhe que vi a cara do meliante. Isto é uma insegurança constante, quem é que pode andar na rua? Ainda na semana passada me roubaram a carteira!”.
Perante isto, não resisti, então, se você viu bem a cara do estafermo, não acha que deveria ir à PSP? Bolas, você até consegue imaginar o sofrimento da vítima, uma vez que já passou por isso.
“Pois, é verdade, mas e depois? E se me colocam, frente a frente, perante o gatuno? E se ele me faz o mesmo? E se ele me marca? E se ele me dá um “enxerto”? Vou pensar!”.
Não é difícil de ver que não moverá uma palha. Pela colaboração com a polícia, pela solidariedade entre pessoas vítimas de assalto, pela cidadania que lhe cabe, pela liberdade de todos, não fará absolutamente nada.
Se preciso for, amanhã, será a primeira a queixar-se contra a insegurança, contra a polícia, contra a justiça e sei lá que mais. Muitos de nós são assim.
O GERALDO VOLTA ATRÁS
Seriam para aí umas 14H30, já tinha escrito o texto de cima, quando o Geraldo veio ao meu encontro. “Vá comigo, por favor! Estou mal, preciso de ajuda!”.
Lá fui com ele à Emergência Social, da Segurança Social, e, como sempre, fui recebido com extrema sensibilidade e compreensão. Perante o estado decrépito do Geraldo, o funcionário tentou tudo para que ele fosse recebido na Casa Abrigo ou no Farol. Infelizmente, não havia vaga em qualquer destes estabelecimentos de apoio a carenciados. Fica a aguardar oportunidade de um lugar.
Vamos ver se o Geraldo aguenta…
Enfim, fizemos o que podíamos. Há muitos Geraldos por estas ruas estreitas. Mesmo fazendo o que pudemos, tenho noção de que não é muito, mas, perante recursos escassos, pouco mais se pode…
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