terça-feira, 10 de agosto de 2010

O URBANO ENGRAXADOR DE SANTA CRUZ





 Quem olha para ele, naquele primeiro olhar inquiridor, pela cara-fechada de aparência granítica, bigode farto sobre o lábio superior como um til sobre uma vogal, toma-o como um homem pesado e arrogante. Começamos a falar com ele, e, como milagre, aquela máscara afivelada de duro, cai-lhe aos pés e dá lugar a um menino. Falo do senhor Urbano Pinto, engraxador do Café Santa Cruz.
Alto, de porte atlético, vestido informalmente de camisa de ganga, calça preta de algodão e sapatilhas, o senhor Pinto, para todos os efeitos, no Café mais majestoso da cidade, é o embaixador representativo de uma profissão em desaparecimento. Embora não pareça, tem 66 anos. E não se pense que levou uma vida fácil. Nada disso. Com 12 anos já andava a engraxar sapatos em praças e pracetas da Baixa de Coimbra. Cada engraxadela custava 12 tostões, depois passou para quinze. Era dali, daquele esforço do menino, que ajudava lá em casa a prole para que não se passasse fome. Outros tempos, outras necessidades. Não havia estado Social. Nessa altura, custava uma lata de pomada doze tostões no recentemente desaparecido Turíbio de Matos. Hoje custa três euros.
Está no café há cerca de onze anos. No princípio foi quase por brincadeira, depois, tomou-lhe o gosto e hoje, mesmo doente, não passa sem estar presente no estabelecimento de hotelaria mais antigo da cidade. “É um vício entranhado”, diz-me a sorrir. “Os turistas acham graça, tiram fotos, e como na Baixa, contando comigo, já só restam três engraxadores –melhor, verdadeiramente, como deve ser, só há um, eu e mais nenhum. Os outros dois são amostras. Ainda há dias veio aqui um cliente que tinha ido a um colega. E disse-me assim na cara: “ó Pinto, na Baixa, não há nenhum engraxador como você”. Eles, os colegas, demoram apenas uns minutos. Colocam graxa nos sapatos, puxam lustro e já está. Ora, isto não é assim. Um bom profissional, pela experiência, a primeira coisa que faz é olhar para o calçado e estabelecer um diagnóstico. A seguir, consoante o estado dos sapatos, ora aplica mais tinta, mais graxa, está a compreender? Eu trato o calçado com amor e carinho. Desempenho a minha profissão com toda a entrega, como se fosse uma paixão…está a compreender?”, enfatiza.
Chegou a trabalhar em cinco engraxadoras da Baixa até ir para a tropa. Depois do serviço militar fez um pouco de tudo, trolha, dando serventia a pedreiros, ajudante de canalizador, etc. Depois estes serviços começaram a falhar e então, há cerca de 11 anos, "como vi que a minha antiga profissão de engraxador estava a desaparecer, pedi para estar a engraxar dentro e fora do café Santa Cruz” –até há cerca de vinte e cinco anos, todos os grandes cafés da cidade tinham o seu polidor de sapatos diariamente. Lembro-me de no extinto Mandarim, por volta dos anos de 1960/70, do senhor Raul. Morava na Conchada. Um homem servil, pau para toda a colher, sempre pronto a ajudar, e respeitado por todos os empregados e clientes do desaparecido café da Praça da República.
 Em provocação, interrogo o senhor Pinto:
-Conte-me cá, o senhor disse-me que é muito fotografado por turistas. Ora, sendo o senhor um homem todo desempenado, certamente, terá histórias de mulheres, estrangeiras, que tentaram engatá-lo. Conte-me lá.
-Bem, não digo que não houvesse tentativas, o senhor sabe como é. Mas eu fui sempre um homem direitinho. Nunca me atirei à febra…quer dizer…só mesmo por acidente…compreende?
Estou casado há 47 anos. Tenho muito cuidado para não pôr a pata na poça. Fui educado assim pelos meus padrinhos. Quando eu fugia à escola levava correadas com um cinto até dizer chega. Nem lhe conto o que apanhei. Tenho a educação que tenho graças a eles. Estou-lhes muito agradecido. Mesmo a apanhar correadas, foi uma boa educação. Nunca entrei numa esquadra de polícia. Só fui uma vez ao Palácio da Justiça para levantar o passaporte para ir para Alemanha trabalhar. Já foi há muitas décadas. Ainda lá me aguentei cerca de dois anos, mas eu tinha muitas saudades dos meus filhos e da minha mulher. Já não aguentava aquilo. Era pior que na tropa. Um gajo tinha de fazer tudo, lavar a roupa, fazer o café, o almoço…tudo!
-Diga-me, senhor Urbano, justifica estar aqui à espera de quem não prometeu vir? Isto é, ser engraxador hoje justifica?
-Não, não justifica. Se não fosse o bichinho que me corrói cá dentro, não valeria a pena. Mas eu gosto disto…sabe?! Hoje há pouco movimento. As pessoas andam quase todas de sapatilhas, de chinelos…
Eu agora até só venho meio-dia, de tarde ou de manhã. Fui operado à garganta…mas, mesmo assim, tenho de vir cá.
-Então quantos filhos tem senhor Pinto?
-Tenho três filhos, cinco netos e um bisneto. São uns amores…são o resultado de uma vida de trabalho…entende?
Diga-me lá, vai escrever a minha história…não vai dizer mal, pois não? Vai escrever lá nessa coisa do Blogue…mas não vai para o jornal, pois não? É que ainda há tempos um vespertino da cidade quis entrevistar-me mas eu não deixei. É que eu estou reformado, e sei lá, não vão implicar comigo por eu estar a engraxar. É que, apesar de receber só 272 euros…preciso deles para viver…compreende?”

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