sábado, 3 de abril de 2010
O LIVRO NÃO EDITADO
Trabalho há muitos anos numa grande livraria da Baixa da cidade. Gosto muito do meu trabalho. Laborar numa livraria é como estar na terra dos sonhos, partilhá-los, e fazer parte deles. Sim, porque um livro editado é sempre a concretização de uma utopia de alguém. Nesta engrenagem humana é como se eu fosse o fiel depositário dos segredos do autor.
Um livro carrega uma carga mística muito para além de uma imagem sacra. Não há livros bons ou maus. Há livros simplesmente, que na sua missão entre os homens, carregando e dando a conhecer a história, tentam aperfeiçoar e torná-lo melhor. Umas vezes conduzem à paz outras vezes à guerra. Para além do romance ficcionado e da poesia, há livros para todos os géneros: de cozinha, de estética, de viagens, de sonhos, de Tarot, tantas coisas mais, e até de crenças.
Na minha livraria vendo o “Livro de São Cipriano”. É espantoso o que se passa com as pessoas para o adquirir. Parece que estou a ver, passo-entre-passo, entra a mulher de meia-idade, dá uma volta pela livraria, disfarçadamente pega noutros títulos, mas verdadeiramente ela está fixada no “São Cipriano”. Observo o seu aspecto exterior de mulher em luto profundo. Aposto que perdeu um amor há pouco tempo. Os humanos são mesmo assim, quando a má-sorte bate à porta tudo serve para agarrar o seu reverso.
Quando vê que ninguém está a observar, com mil cuidados, pega no livro, entrega-mo para embrulhar e diz: “é para a minha vizinha. Pediu-me que lho comprasse. Dizem que este livro é de bruxaria, é verdade?”. Como sempre, rio-me e exclamo: minha senhora, qualquer livro pode ser bom ou mau, consoante a fé que se tem na sua mensagem escrita. Se a senhora acreditar, provavelmente, o seu desejo acontecerá. Responde imediatamente a senhora: “eu só estava a perguntar…o livro não é para mim!”.
Com o tempo, fui-me tornando um psicólogo nato. Aprendi a conhecer as pessoas. Afinal nem é assim tão difícil, somos todos tão infinitamente iguais. É certo que há umas pequenas diferenças, mas para um observador atento facilmente se pode dividir os humanos em três graus. Depois é só classificá-los, e inserir os exemplares nos grupos correspondentes. É extraordinário como, fazendo bem o encaixe, se pode adivinhar tudo, até os gostos mais íntimos, daqueles que só o próprio sabe. Normalmente, observando uma pessoa durante escassos minutos, ou falando com alguém, consigo acertar em cerca de 80 por cento da sua forma de ser e estar na vida. É certo que às vezes tenho recaídas, mas é raro. Mas acontece. Estou a lembrar-me de um episódio que me aconteceu há tempos e nunca consegui entender.
Até há uns meses atrás, tive um cliente muito especial na minha livraria. Ele era um homem de cerca de cinquenta anos. Vestido medianamente, sem grande rasgo de moda. Notava-se que deveria ser uma pessoa simples. Era afável mas não permitia grandes avanços no trato. Era um homem triste, isso tenho a certeza, eu lia a nostalgia nos seus olhos. Muitas vezes, discretamente observava os seus gestos pausados e ia fazendo as minhas deduções e classificando-o no grau 1 –que, no meu manual psicológico existencial, corresponde a uma pessoa que, apesar de disfarçar bem, carrega um karma negativo, talvez porque não foi amado na infância, muitas vezes preterido em relação a outro irmão, quem sabe separado de uma pessoa que gostava muito, ou, provavelmente, maltratado fisicamente. Este meu elemento de grau 1 percorrerá a sua existência à procura de ser amado sem nunca o conseguir. É um ser que se habituou a dominar, manipulando a presa a seu bel-prazer. É bipolar, os seus sentimentos balançam entre o amor e o ódio. É um predador de amor.
Procurará o impossível. Anda de amor em amor, de alcova em alcova, sem nunca encontrar a estabilidade emocional de que tanto necessita. O curioso é que procura incessantemente o amor, mas quando o encontra foge dele e parte para outro como se fosse um mendigo. Curioso também, é que estas pessoas serão criativas por excelência nas letras e nas artes.
Era sempre assim, semanalmente, ele entrava na livraria, com olhar minucioso de detective, percorria todo o escaparate sem deixar de olhar um único título. Era como se procurasse um livro especial. Várias vezes tentava aproximar-me com o tradicional cumprimento: boa tarde! Se puder ajudar alguma coisa, faça o favor de dizer, mas ele nunca dizia nada. Jamais perguntava o quer que fosse. Este homem era para mim um mistério. Mesmo com a minha experiência empírica de conhecer as pessoas existencialmente, eu não tinha palavras para esta imagem. Era como se fosse o Alberto Soares, do livro de Virgílio Ferreira, “A Aparição”. Quem sabe uma imagem no presente, um espectro do passado, em projecção para o futuro? Eu não tinha explicação racional para enquadrar este homem nas referências do quadro por mim inventado.
O que procuraria o homem? Quem sabe um livro que lhe recordasse aquele amor passional, aquela paixão de fogo ardente que lhe consumira a alma e fizera dele uma sombra de ninguém? Mas ele nunca abria um livro. Limitava-se a ver os títulos na capa e na lombada. Esta incongruência de atitude consumia-me diariamente. Quando ele entrava, ao sábado, na livraria, ficava ansioso. Apetecia-me abaná-lo e obrigá-lo a dizer-me ao que vinha. Confesso que já odiava este personagem saído das nuvens do mistério. Cada vez mais sentia o seu distanciamento como um desprezo.
Mas eu não desistia. Um dia haveria de saber a causa que o motivava e o levava, como autómato à minha catedral de livros.
Há uns meses atrás, mais uma vez o vi transpor a porta de entrada. Junto ao balcão, tenho sempre uns rebuçados de fruta para acalmar a minha inquietação. Lentamente, fui retirando o plástico que envolvia um “drop” e coloqueio-o na boca. Mentalmente, lancei o desafio: é hoje! É hoje que vais saber o que traz este homem aqui!
Devagar, devagarinho, fui-me aproximando dele.
-Boa tarde, como está? Então é hoje que fala comigo? Olhe que eu não tenho lepra…ao mesmo tempo que me abria num largo sorriso.
-Desculpe –disse-me a titubear, como um menino traquina apanhado em falta pela professora-, eu ando à procura de um livro…só isso!
-Ai sim? Ora, então já podia ter dito há muito tempo. Diga-me o autor e o título, e é fácil, contemporizei.
-…Afonso do Espírito Santo…”Os anjos precisam de ter sexo?”…
-Não conheço…sabe qual é a editora? Interroguei.
-Não tem editora. O autor sou eu…mas nunca foi publicado!
*TEXTO ESCRITO PARA A "FÁBRICA DE HISTÓRIAS" SOB O MOTE "PALAVRAS PARA UMA IMAGEM.
http://fabricadehistorias.blogs.sapo.pt/42896.html?view=459664#t459664
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7 comentários:
Caro Luis, este é um relato muito bonito e interessante.
Gostei particularmente do retracto psicológico que faz das pessoas que por si passam. É engraçado, pois faço exactamente o mesmo, de um modo um pouco diferente, mas sempre achei ridiculo demais para o divulgar. Talvez a minha "meninês" me deixe um tanto ou quanto envergonhada.
Gostei de me "rever" um pouco na sua história.
Um abbraço, e desejos de uma feliz páscoa.
Que lata é essa de dizer que procura inspiração no meu humilde estabelecimento se, obviamente, as musas abundam no seu?!? :)
Confesso que, esta semana, a inspiração andava comprida demais e, para cortar metade do texto, perder-se-ia a ideia...
Mas ainda bem que não o fiz!!!
Assim tive elogios "à séria" na semana passada e esta não me estatelo redondinha no chão... ;P
Parabéns e, quando eu entrar no seu vero estabelecimento, ainda quero ver o que pensa de mim...
Pode ser que, quando cá vier, eu não esteja nos meus dias e não dê uma para "a caixa". Pode arriscar.
Não se preocupe, estes escritos são para levar a brincar.
Obrigada -a si e também à Ana- por ser tão generosa comigo.
Volte sempre. Já sabe que os meus estabelecimentos, "este", onde "dou" -sem ser de mão beijada- as minhas histórias, e o outro, propriamente dito, estarão sempre ao Vosso dispor.
Um grande abraço e obrigadas.
Hoje passei por aqui ao de leve.
Em boa hora, diga-se.
Excelente trabalho, como de costume, aliás!
Votos de continuidade e um grande abraço.
Obrigado Alcides. Um grande abraço para si também. Volte sempre.
É sempre muito bem-vindo.
Egocentrismos à parte, li este post, e pareceu que foi escrito para mim ou sobre mim.
Desde criança que nutro uma paixão por livros, desde as possibilidades infinitas do seu conteúdo até à sua substância material. Desde miúda me imagino a trabalhar numa livraria ou biblioteca. Mas a via ainda não me levou por aí....
Maravilhosamente escrito como sempre :)
Parabéns
Obrigada, Moon. Enche-me de vaidade. Se fosse mais novo do qiue a menina diria que aprendi a escrever consigo -porque você pode ser musa para qualquer um-, como sou mais velho, digamos que faço por me aperfeiçoar todos os dias. Vou lendo o seu blogue e outros escritos e vou tentando melhorar. Isto dito com franqueza. Escrever não é diferente de outra qualquer actividade. É o "continuum" que marca a excelência...que nunca se alcança.
Quanto ao seu sonho, Moon, a menina é muito nova. Está muito a tempo de os concretizar. Se permite a sugestão, nunca desista de sonhar... e tentar concretizar, obviamente.
Tenho muito gosto que escreva, ao meu lado em desafio, na "Fábrica de Histórias".
Um grande abraço.
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