terça-feira, 30 de setembro de 2008
AS URBANAS ILHAS DA FELICIDADE
Eram 21 horas de um destes sábados de Setembro. Eu e você, leitor, passeávamos pela Baixa da cidade. Enquanto percorríamos as ruas estreitas, reparávamos que estas estavam completamente desertas, era desconfortante andar ali. O sentimento de insegurança era palpável. Nem vivalma se avistava. De repente, um pássaro de relativas dimensões bate as asas e o som ecoa como tiro de canhão. Você, surpreendido pelo susto, dá um salto e quase se estatelou na calçada de pedra portuguesa. Leva a mão ao peito, e, como bom português que se preza, solta uma valente imprecação. Claro que, naturalmente, ia-me desmanchando a rir. Você é que não gostou nada do meu riso hilariante e sarcástico. Em jeito de justificação, atira: “fogo!, já viu isto? Não se vê ninguém! Onde é que se meteram as pessoas?”
Antes de eu poder responder, contra-ataca novamente: “É a crise! As pessoas agora nem saem de casa para não gastarem dinheiro”. Como eu não respondi, mas abanei a cabeça em sinal de discordância, você, como mestre sapiente dono da verdade, ficou à defesa e replicou: “ai pensa que não, que não é da crise? Homem, o que se passa aqui em Coimbra é transversal a todo o país!”
Como pareceu adivinhar no meu rosto um engelhar de cara, embrulhado em sorriso amarelo, novamente tomado de forças redobradas de réplica, questiona: “quer apostar que o Café Santa Cruz (dos poucos abertos àquela hora na Baixa) têm menos de uma dúzia de pessoas, incluindo os empregados?”
Eu continuava céptico, mas, mesmo assim, aceitei o repto e lá fomos. De facto o belíssimo café, irmão siamês da Igreja com o mesmo nome, estava às moscas. Sentámo-nos, bebemos café, e você, exultante, como se fosse o ganhador mais procurado do Euro-milhões da região da cidade do Mondego, sem disfarçar a arrogância, ufano, de peito feito, replica: “vê? Eu não lhe disse? É a crise. De que vale os estabelecimentos estarem abertos se as pessoas não vêm passear? É difícil de ver? Você parece cego, homem de Deus”, recalcitra você, dirigindo-me um olhar reprovador, como se me chamasse besta.
Confesso que a sua insistência, como se a verdade fosse una e indivisível, já me estava a chatear. Você até sabia que eu tinha as minhas razões para não concordar consigo. Anteriormente estivemos a falar sobre este assunto e eu até lhe disse que o abandono das zonas históricas não pode ser só atribuído à crise financeira das famílias. Tem de haver mais qualquer coisa, sublinhei com ênfase. Mas, apesar disso, sem levar em conta a minha argumentação, você insistia em que tudo se resumia à falta de dinheiro.
Tenho a certeza de que você está enganado, contra-argumentei, e vou provar-lhe. Venha daí. Entrámos nos nossos carros e você foi atrás de mim. Não sem antes, de uma forma insistente, sem sucesso, me interrogar acerca do nosso destino.
Fomos ao Fórum Coimbra, na encosta de Santa Clara. Os estacionamentos, interiores e exteriores, estavam repletos e tivemos de aguardar. Entrámos e fomos directos ao terceiro piso, onde, depois de esperarmos um bom bocado, nos sentámos a beber um sumo. Você, como se tivesse entrado num mundo novo, parecia abismado. Centenas de pessoas, ou talvez milhares, percorriam a superfície comercial. Daquele piso cimeiro, com uma panorâmica plena, naquelas imitações de ruas públicas, víamos o ar de felicidade daquelas pessoas. Eram famílias inteiras, entre novos e velhos, a consumir hambúrgueres e outras especialidades. Reparei naquela senhora a passear despreocupada com a carteira aberta a tiracolo. Você, perante todo aquele movimento, parecia absorto e não falava. Parecia que, de repente, tinha perdido o “pio”. Como se, perante a evidência, perdesse toda a réplica.
Mas se pensava que ia ter complacência estava bem enganado. Agora quem falaria seria eu. E você, agora, sem sequer pestanejar, limitava-se a escutar-me. Comecei então a defender os meus argumentos.
Se a crise é a causadora da desertificação das cidades, como se poderá entender esta deslocalização para estas “ilhas”? Aqui, se há recessão, é só aparente. A maioria das salas de cinema “multiplex”, estão completas, nomeadamente o “Mamma Mia!”, com a Meryl Streeap, bem como outros filmes.
As pessoas vêm para aqui porque o conforto é uma constante. Podem passear à vontade com segurança e frequentar os estabelecimentos até à meia-noite. Se escolhessem a cidade o que recebiam? Pouco, para não dizer nada. As cidades, dentro do formato tradicional, estão ultrapassadas. Mesmo se, eventualmente, se recuperasse todo o edificado, mesmo assim, a urbe continuaria sem atracção e sem funcionar. As cidades, no seu conceito de vivência amorfo e estático, estão como um velho de cem anos. Pararam no tempo. Hoje os grandes centros urbanos estão para os centros comerciais como há cerca de vinte anos estavam as aldeias para as cidades. A deslocalização é igual. As pessoas “fogem” para estas “ilhas de felicidade aparente” porque aqui respira-se movimento e modernidade. Há aqui imensas possibilidades de escolha. Poderíamos perfeitamente apelidar estes centros de consumo de alter-ego das cidades, uma extensão futurista, na qual estas, se quiserem sobreviver, terão de copiar o modelo. E refiro-me concretamente à disciplina, quase ditatorial, de horários de estabelecimentos. Nas zonas históricas, para além de ninguém querer trabalhar à noite e ao fim de semana, a liberdade de cada um estabelecer o horário que mais lhe convém na sua loja, ajudou a matar o comércio de rua. Depois a falta de policiamento, sobretudo à noite, acaba com o resto. Já para não falar na falta de limpeza e, nalgumas artérias, luz pública. A cidade, concretamente a Baixa de Coimbra, é uma zona abandonada. Repare-se no piso das ruas, no empedrado partido e cheio de buracos na calçada portuguesa. Atente-se na quase uma dúzia de prédios abandonados, uns sem início de obras, outros entaipados há vários anos.
Acho curioso quando alguns responsáveis chamam à Baixa de “Centro Comercial a céu aberto”. Deveriam estar calados e pugnar por medidas eficazes, políticas de revitalização por parte da autarquia e sensibilização dos comerciantes de que ou mudam ou morrem todos.
Ah! Você, com este meu discurso, adormeceu. Que falta de respeito!
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