terça-feira, 23 de setembro de 2008

HISTÓRIAS DO MEU LARGO



 O Largo da Freiria, é um encantador recanto entre a Praça 8 de Maio e a Praça do Comércio, em Coimbra. Supõe-se que o seu nome advenha de uma Freiria, casa de freiras, que existiu neste largo, presumivelmente, entre os séculos XVIII e XIX.
Em conversa com um antigo residente, que aqui passou a sua infância, o senhor Emídio, um simpático septuagenário que nasceu em 1929, vim a saber pormenores, do ponto de vista histórico, quanto a mim, interessantíssimos.
Segundo as palavras do meu amigo, cujo avô tinha uma oficina de funileiro, latoaria, no rés-do-chão do prédio que, de um lado dá para este largo e do outro faz esquina para a Rua Eduardo Coelho e que em tempos, e durante muitos anos, foi a Topal, um pronto-a-vestir, durante décadas, morou neste mesmo edifício no segundo andar.
Em 1940, com a Segunda Guerra já a decorrer, e mesmo com a neutralidade de Salazar, os habitantes da Baixa da cidade viviam muito mal, com absoluta carência de víveres. Os géneros alimentícios, nomeadamente o pão, escasseavam. Era, neste recanto sem saída, na “Padaria Popular”, propriedade do Dr. Bela, que toda a gente, passantes e moradores, se abasteciam do tão necessário pãozinho. As filas para o obterem, legalmente, só poderiam começar às 7,30 da manhã. O estabelecimento abria portas às nove horas. Porém, como a insuficiência de alimentos era extrema, e cada pessoa só poderia comprar um pão de meio quilo, às 4,30 já havia “bichas”. Então, numa desumanidade sem rosto, os guardas carregavam à bastonada sobre o pobre povo que ousasse desobedecer à norma. “Uma miséria”, remata o meu amigo Emídio, por entre um suspiro de indignação.
Nesse tempo, em que já havia electricidade nas casas da Baixa –o slogan publicitário nos jornais era “Electrodomestique a sua casa”- mas como não havia dinheiro para a manter, tudo era rentabilizado ao máximo. Por exemplo, para colmatar o frio incomodativo de inverno, a “Padaria Popular” vendia as brasas incandescentes aos residentes do centro histórico. Levavam as “escalfetas” –espécie de caixa em chapa de zinco, perfurada por cima, que servia para aquecer os pés- e as brasas eram transportadas dentro delas até às suas casas.
“Eram tempos desgraçados, as crianças, numa completa indigência, vadiavam pelas ruas”, continua o meu amigo. Um dos passatempos que lembra era que, neste largo, onde hoje existe uma casa de velharias, por volta da década de 1940, havia um armazém de batatas. Então, naturalmente, por força das circunstâncias da proximidade do tubérculo, havia muitas ratazanas. O dono do armazém, o Aires Rodrigues, tentando colmatar a praga, durante a noite, colocava umas armadilhas de arame, umas ratoeiras com uma abertura, que quando o mamífero roedor entrava, aquela fechava-se e este, ficando vivo, não conseguia sair. Então, no dia seguinte, o empregado do Aires Rodrigues, colocava as ratoeiras no Largo, como troféu de caça, e as crianças, numa crueldade maliciosa, divertiam-se a despejar água a ferver para cima dos pobres animais, que, numa “chiadeira” infernal, acabavam por sucumbir a tamanha perversidade infantil.
Lá ao canto, do lado direito da “Padaria Popular”, havia o “Nacional”, um grande salão recreativo popular. Durante a semana ensaiava o Rancho folclórico, salvo erro, o “Flores da Mocidade”, cujo ensaiador era o Raul Mesquita, já desaparecido, e ao fim-de-semana havia sempre bailarico. Igualmente, com a mesma cadência e interligados, no fim da rapsódia popular, havia pancadaria de meia-noite até às tantas da madrugada. Só eram interrompidas pela chegada dos guardas, que só apareciam muito depois da refrega ter começado, vindos da primeira esquadra, a duzentos metros deste largo. Faziam-se anunciar com uns estridentes apitos, como a avisá-los e dar-lhes tempo para a fuga.
“Era um largo muito castiço”, continua o meu amigo Emídio. “Havia por aqui um louco, com um vozeirão infernal, mas que cantava muito mal, daqueles personagens típicos das cidades que ainda hoje se vêem, então, com uma atracção fatal por este recanto, este desequilibrado, quase todos os dias, às tantas da noite, vinha tentar impressionar os moradores com o seu talento vocal. Os residentes, em troca, mal-agradecidos, despejavam-lhe água para cima, mas nem assim o cantador desgrudava. Seguindo o mesmo exemplo, o meu amigo Emídio, já apetrechado para o efeito, tinha uma grande seringa que, através da janela do seu segundo andar, neste Largo da Freiria, molhava o pobre tolo solista, por entre uma ária de uma cantata avulsa. Nem mesmo assim o cantante descolava.
“Que saudades que tenho desse tempo! O que eu não daria para voltar atrás, ao meu querido Largo da Freiria”, remata o senhor Emídio, por entre um brilho intenso dos seus olhos e um suspiro de saudade.

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